Le Funambule
Quando um boxeador está desferindo um golpe, ele baixa a guarda. Nunca estará tão vulnerável como quando em busca de uma grande e inédita vitória. Talvez por isso muitos não se atrevam a deixar as poltronas para subirem ao ringue. Acomodados em suas poltronas não se sentem vulneráveis. O Velho também passou longos anos de sua vida acomodado numa poltrona. Parecia bem como todos ao seu lado, mas não estava. um dia percebeu que poltronas podem ser perigosas e começou a se sentir desconfortável. Não lhe fizeram bem. Deram-lhe coceiras...
Nesse dia o Velho, embora velho, pressentiu que uma decisão começava a se delinear em seu peito. Nervoso, pressentia as consequencias, pressentia o que enfrentaria em silencio até que sua voz fizesse calar todas as outras que passaram a assombrá-lo desde o momento em que caíra. Sabia que teria inicio a maior luta de sua vida; uma luta que se desdobraria em si mesmo. A idade que para muitos é um convite a se acomodar, para ele se tornara uma vantagem. Mais experiente sabia que quem se arrisca a viver a grande luta de sua vida em algum momento precisa aprender uma importante lição, e ele a aprendeu. Custou-lhe caro o aprendizado, mas hoje sabe o que os que não subirem ao ringue jamais saberão.
Anos atrás sofreu um nocaute, é verdade, mas engana-se quem pensa que o Velho, embora velho, fora aniquilado. Na queda tentara se agarrar às cordas, mas seus braços, conquanto hipertrofiados e fortes, não foram capazes de suster o peso daquela derrota. Fora à lona, como também sucede aos grandes pugilistas, e nela se deixou ficar enquanto observava o mundo dar-lhe as costas para reverenciar o novo campeão. O Velho caíra enquanto atacava, e não havia quem o protegesse.
Quando as luzes do ginásio se apagaram, o Velho se viu sozinho. Sentia-se derrotado, desnorteado, mas, sobretudo, sentia-se sozinho. A sequência de golpes que lhe fora imposta, se não severa demais, como argumentam alguns leigos afundados em suas poltronas, indubitavelmente, atingira-o em pontos críticos. “Você é forte. Muitos teriam sucumbido em seu lugar. Deveria dar-se por satisfeito em ter saído inteiro daquela luta.”, afirmam os amigos que presenciaram sua queda. Por mais que repitam isso quando se encontram, o Velho, embora velho, não está nada satisfeito, e orgulhoso como é, desconfiado como é, se não vê em tal argumento um motivo para se consolar, muito menos se dá por convencido. Ademais, ele não sente ter saído inteiro daquela luta, como pensam seus amigos. Algo lhe fora subtraído e o Velho o quer de volta. Quando ainda convalescia, era possível notar que a derrota o abalara profundamente, mas algo inominável deu-lhe a firmeza de que necessita um homem para retornar às origens e recomeçar. O Velho teve de engolir o próprio orgulho, reconhecer erros e se tornar um aprendiz novamente. Como ele próprio o diz “A derrota me mandou para o fim da fila de uma hora para outra, e eu não conseguia compreender como aquilo havia acontecido. Mais do que um título eu havia perdido a mim mesmo."
"Todo mundo dizia para eu seguir em frente, mas eu não tinha como simplesmente seguir em frente. Precisava descobrir aonde me perdera, precisava voltar às origens. Algo em mim dizia Volte, mas eu não voltava. Eu insistia em ouvir quem jamais estivera aonde eu estive. Eu insistia em ser quem eu nunca fui e quanto mais insistia, mais me perdia. Foi quando a urticária começou. A pele avermelhada, a coceira, os exames, os remédios, a ansiedade e o medo de tudo aquilo piorar numa espiral sem fim. Meu tempo estava acabando. Eu estava me acabando. Meu corpo falava, gritava, coçava mas eu não o ouvia até o dia em que compreendi que se havia uma solução efetiva para mim ela não estava nos remédios. Ela estava na luta. Foi quando deixei de ser um amedrontado espectador de mim mesmo para me tornar-me novamente um lutador."
Espectadores assistem; lutadores, lutam, e o Velho, embora velho, ergueu-se da poltrona e aceitou a luta para a qual a vida o destinara.
Ele não está disposto a morrer sem recuperar o que, um dia, perdeu. Terá sua oportunidade, terá sua revanche.
Mais do que uma revanche, o que o Velho busca chama-se Redenção, e redenção é o nome que dá a um gênero especial de vitória.
É isso mesmo, o Velho, embora velho, sem títulos e desacreditado por muito dos que hoje vivem acomodados em poltronas, subirá ao ringue ainda mais uma vez. Se acaso perderá ou ganhará é difícil vaticinar. No momento, o que o Velho sabe é que não poderá passar sem lutar a sua grande luta. Não encontrará a paz que procura se jogar a toalha. Por isso, pacientemente, obstinadamente, prepare-se para quando a grande hora chegar.
Falemos um pouco de sua trajetória até o fatídico dia. O Velho tinha um futuro promissor. Ganhara lutas importantes. Por isso, embora lamentem sua derrota seus amigos dizem que é um vencedor, mas ele não se considera vencedor, simplesmente, porque para ele a luta ainda não terminou. O que está no fim é um difícil round de sua vida. Muitos não entendem isso e o desacreditam. Às vezes, com um verniz de boas intenções, aconselham-no a se aposentar, a refestelar-se numa poltrona, orgulhar-se de seu passado e acompanhar os novos boxeadores. Mas o Velho, embora velho, não é um aposentado e nada vê em seu passado para se orgulhar se se esquivar de sua grande luta. O Velho não chegou até onde sabe que pode chegar, ou antes, até onde algo em seu coração lhe diz ser possível, necessário, chegar.
Sim, como disse, não se questiona que o Velho quando jovem tinha uma carreira promissora pela frente e os títulos conquistados até aquela luta não deixavam dúvidas sobre sua força e envergadura. Entretanto, depois de ter visto e ser visto sob a perspectiva de quem esteve na lona, tudo mudou. Com a derrota, sentiu como se todos os títulos tivessem sido perdidos e mais do que isso: sentiu ter perdido parte da confiança que o mundo e ele próprio depositavam em sua pessoa, e isso ele quer de volta, pois sem confiança em si mesmo homem nenhum não pode viver.
O Velho envelheceu rapidamente depois que sua confiança foi ao chão. Tornou-se desconfiado e ansioso em relação ao seu potencial e futuro. Não pensou que perderia, mas sem dar-se conta, perdera a confiança para lutar e quando esta confiança é perdida, tudo está perdido para um homem como ele. Sem confiança, resta-nos a lona ou ocupar um lugar na platéia. Quando se perde a confiança, tornamo-nos aposentados à espera de que a campainha soe para nós.
“Não há tempo a perder”, diz de si para si quando convidado a fazer parte das distrações e dos afazeres cotidianos dos aposentados. Assim pensa, porque o Velho, como disse, tem pressa em reaver o que perdeu. Além disso, excita seu coração a ambição de conquistar o grande cinturão dos boxeadores. Do Velho foram tomando títulos menos significativos e os que ainda conserva na parede de seu quarto apenas servem para rememorá-lo de sua derrota. Se fosse um aposentado como muitos por aí, olharia com nostalgia e orgulho para aqueles diplomas e fotografias, mas o velho sendo como é, ao mirá-los é possuído por uma raiva que o motiva nos treinos.
Embora durante muito tempo afirmara ter perdido para o mundo, esta é uma asserção sobre a qual cabem mais algumas palavras. Ela não se encaixa com exatidão ao seu caso se não acrescentarmos que o Velho perdera para o mundo porque antes disso perdera para si mesmo. Com a queda, aprendera que para vencer o mundo cabia a ele vencer-se. Deste modo, luta consigo próprio, todos os dias, longe dos holofotes e do público. Assim transcorre sua vida: a cada treino, uma luta e sempre com um adversário mais forte que o anterior, pois, como disse, a cada luta o velho torna-se mais forte, mesmo quando é derrotado.
Perdidos os títulos, disseram que o Velho estava velho, que o Velho estava acabado. Quando começou a dar ouvido a essas pessoas tudo começou a se perder. Que os outros desconfiassem dele pouco ou nada mudaria, mas quando ele próprio começou a desconfiarde si mesmo, refugiou-se numa poltrona, e lá morreira se a urticária não o chamasse de volta o ringue. Se tudo estava perdido, nada mais tinha a perder. Deste modo, pouco a pouco, recrudesceu dentro de si o desejo de lutar mais uma vez, e sendo esta a última, teria de ser a grande luta de sua vida. O velho decidiu, então, treinar com afinco e por conta própria, mas não só: o velho é orientado pelos grandes boxeadores de todas as épocas.
Depois que resolveu se levantar da poltrona, deixou de lado a perspectiva dos sabichões. Não compartilha mais das mesmas opiniões. Na verdade nunca as compartilhou. Sempre se sentiu um deslocado. Se ali se conservava outra razão não vê senão o medo de se arriscar. Era o que tinham em comum. O modo de vida dos sabichões, que vivem entretidos em lutas arranjadas, esquivando-se de seus verdadeiros e mais íntimos combates, deu-lhe coceiras. O que podem lhe ensinar se nunca subiram ao ringue de verdade?
Se bem que tenha tratado o Velho como um boxeador, não, ele não é precisamente o que entendemos como boxeador. Não que o Velho também não o seja, pois acredita que viver é lutar, e neste sentido a ele parece que cada um luta do seu jeito. Mesmo aqueles que preferem assistir, refestelados em confortáveis poltronas, aos grandes boxeadores, vez ou outra precisam ir à luta. Seja como for, o modo de o Velho lutar é escrevendo. Ao Velho somente importa a sua luta, a sua revanche. Ele não quer viver como toda a gente. O Velho não ter uma vida normal. Ele não quer estar junto de seus amigos aposentados na platéia. O Velho, embora velho, só quer saber de treinar; o Velho, embora velho, só quer tornar-se mais forte. Ele quer tomar de volta o que lhe fora tomado. O Velho quer o grande cinturão. Se para tal, precisar atacar novamente, ele o fará, mas dessa vez o desfecho será outro. O Velho aprendeu uma importante lição: nunca se está tão vulnerável como quando se está atacando. Por isso, quem parte em busca de um sonho precisa estar preparado para as derrotas. Elas fazem parte da vida de todo vencedor e quem acha que é se esquivando da luta que não enfrentará dificuldades e derrotas está profundamente enganado. São as dificuldades e derrotas que forjam os grandes campeões.
Petrópolis, 8 de abril de 2022