segunda-feira, 10 de junho de 2024

O Salto




 O Salto

 


 quem subestimará este relato, julgando não passar de devaneio de alguém com o qual acredite não ter nada em comum. Não se aterá à sua universalidade, limitando-se apenas divisar na decisão de não permanecer acuado um gesto de coragem, ou loucura. A bem dizer, após tantos anos, ele próprio não sabe o que pensar. Nem mesmo sabe dizer se conscientemente tomou alguma decisão porque, se o fez, é-lhe impreciso afirmar até que ponto ela não teria se dado de maneira instintiva, reflexo meramente motivado pelas circunstânciasAssim, slhe dizem ter demonstrado coragem ou loucurade imediato objeta terem sido as de um homem que salta dsexto andar de um edifício em chamas. Este homem sabe que provavelmente encontrará a morte, mas reserva a si o direito de, sendo ela inevitável, escolher como não morrerá. 


Há mortes e mortes. 


Até o último momento não sabia qual seria o desenlace de sua situação. Que este se aproximava era-lhe evidente e inevitável ; ao mesmo tempo, parecia hesitar em reconhecê-lo, como se preferisse o martírio de um sufocamento à volúpia de um salto no vazio. Foi-lhe terrível deparar-se com toda a extensão da impotência humanamas o que realmente o intimidou, foi sentir pesar sobre si a responsabilidade de descobrir um modo de enfrentar a angústia suscitada por uma situação que fugia ao seu controle e o consumiaMergulhado em incertezas, pressentia, no recrudescimento de seu desassossego, que se avizinhava do fim. Não atinou, não poderia, mas era a aproximação da vida - e não de seu desfecho - que o aterrorizava. Ele morreria, mas não chegara seu fim.  Enquanto os gritos oriundos de outras salas o exasperavam, esforçava-se em organizar e racionalizar os fatos, sentimentos e pensamentos que o levaram até ali, como se buscasse uma justificativa, qualquer coisa que fosse capaz de apaziguá-lo. Em vão. Acabava sempre por reconhecer nos limites de cada justificativa os mesmos limites de sua razãoEsperava que esta pudesse socorrê-lo - e até então dela se servira com algum êxito - a encontrar outraposições dentro da realidade admitida no interior daquelas paredes, mas tal realidade já se esgotararevelando a falibilidade da razãoSempre cabe em qualquer um de nós certa insatisfação, e vamos mudando de posição, procurando acomodá-las, da melhor forma possível,segundo nossa condiçãoEra o que vinha fazendo. Écomo age um homem antes de deparar-se com seu limite; agora que se encontrava diante dele, talvez por desespero ou apenas por força do hábito, tentou uma última vez abrir a porta, e ao tocar a maçaneta o calor advertiu-o que o incêndio tomara todo o seu andar. Foi quandocom a testa recostada na porta, abatido, reconheceu na incerteza de um futuro que se abria à suas costas sua única saída e, no fim de suas possibilidades, seu desespero converteu-se em novas forças. Levado por um impulso fundamental arremessou sua cadeira à janela para, num só tempo, encher os pulmões de ar e este de gritos como uma criança ao deixar o útero materno. Sentiu que precisamente isto se chama viverinterpretando, anos depois, toda sua vida até aquele instante como uma longa gestação. É assim que conserva em sua memória a lembrança daquele incêndio; e, se bem que a despeito do que vivera ainda hoje não acredite em milagres, nem saiba mais da vida do que sempre soubera, sabe que ela seria inconcebível se eles não existissem.


Petrópolis, 31 de dezembro de 2015.

 

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

 



Free Will

 

He was hesitating. Could he possibly follow the same path he’d followed until then? Yes, from here outside, from where we’d met, we could say yes, but it should equally be said that this didn’t mean no’ wasn’t also the only possibility. In his condition, he wouldn’t go very far. He’d been walking in circles, circles with an ever-shrinking radius, all of them however drawn from the same center, the same impulse. Nevertheless, all directions he’d had a glimpse of from that point seemed to come from what he’d lived until then. Nothing would change. He’d remain the same. Suffice to watch those who’d come before him to erase all trace of doubt. Looking back, he noticed that what was deep and meaningful in himself hadn’t really changed, but transformed. Immutable at the center. He’d never felt things that way until he’d come up to that door. Not that he had pondered them, he’d felt them, and that feeling had revealed a truth. He was now a man in possession of his own truth, the key to his destiny. How had he wandered and waited until it was delivered to him. Not The Truth, of course, Absolute and impersonal. Just his truth, and that was enough for the moment, given he was alone. As he stood in front of that door, he was hesitating. Going through it would be something new. Not like staying out there, where, for better or worse, he could always at least see the people around him. He was alone and scared of what might follow. He could scarcely see, at most his intuition could give him a hunch on what was ahead, and he knew that somehow from that point on it was intuition and not reason, as he was used to, that would guide his steps. He’d lose reason, and that changed everything. It would become something unique, impossible to imitate. Some would say that entering or not was a matter of free will, but he felt as if there wasn’t another thing to do. Key in hand, free will was for him just as real as anyone with him now, and there was nobody there in that moment other than his memories, illusions. This was free will, then: an illusion. With courage coming from the conviction that he couldn’t have acted any differently, he came in and the door closed itself behind him. What served as an entrance for him now couldn’t be of any good to anybody else. It was his, and only for him and to him would it open. Never again would that repeat itself. Nobody would enter, nobody would leave. He himself wouldn’t be able to leave. Isn’t that how it goes with the life of every man? He would continue to be himself, but he was already transformed. He couldn’t go back, and even if he could, nothing would be changed in what he’d been transformed. There was no other choice. There never was one for those outside not living a life but their own. For him, free will had to be left outside.

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Fora de Forma




Amanhecia quando seus companheiros precipitaram-se pela escada. Pouco depois, faria o mesmo. Seria o último a deixar o alojamento, e o deixaria. Ao menos era o que poderíamos esperar, afinal, em todos aqueles anos, pouquíssimas vezes deixou de cumprir o que cria ser seu dever, e quando isso aconteceu tinha sempre consigo uma boa justificativa. Nunca fora punido. Se se demorava ali era porque sentia necessidade de ficar só antes de fardar-se e se atirar naqueles oito lances de escada que unem o alojamento ao pátio interno do quartel, onde se juntaria aos demais cadetes para formatura matinal. A despeito da expectativa que poderíamos, então, acalentar em relação à sua pessoa, restavam pouco menos de cinco minutos, e não demonstrava inquietar-se com as consequências de um provável atraso. O toque do corneteiro advertia, mas portava-se como se não lhe dissesse respeito. Permanecia ensimesmado diante da janela do banheiro a sondar o mar. “É tão vasto que parece conter algo maior que ele próprio”, murmurou, não sem alguma excitação, ao notar em suas águas o reflexo do sol que se erguia no horizonte. Chegava-lhe ainda, embora cada vez mais distante, o ruído surdo e cadenciado da batida dos coturnos de seus colegas no chão duro do pátio interno. “Estão entrando em forma. O chefe de turma provavelmente terminou a contagem e deve estar comunicando minha falta ao tenente”. Sabia que caso se ausentasse, sem uma justificativa convincente, seria severamente punido. Ainda assim, não a tinha. Só a terá décadas mais tarde. Até lá, seu comportamento será entendido como uma estúpida e insensata afronta às normas, como se caprichosamente tivesse se erguido da cama motivado por uma rebeldia efêmera e pueril. Não, não era o que se passava. Era algo mais profundo e, por isso mesmo, difícil de alcançar e debelar. Tudo ia acontecendo tão espontaneamente que não conseguia sofrear. Era como se sua existência fosse deixando de seguir como um toco em enchente para fixar-se num ponto distinto e imprevisto, à margem de tudo o que até então reconhecera como vida. 

A correnteza seguia, mas não o levaria. Dali onde se isolara,  não sem um misto de melancolia e orgulho, assistia à cena em que seus colegas seguiam em frente, enquanto contemplava a corrente à qual sua vida e as deles encontravam-se, até aquela manhã lhe suceder, atreladas. Houve quem ao passar por ele o admoestasse por demorar-se ali, imóvel, prevenindo-o de que seria punido e que o mais sensato seria entrar em forma imediatamente. Não lhes deu atenção. Não poderia. Não com aquele horizonte emergindo diante de si, sobre si, em si. Sentia-se envolvido, dominado por algo maior que ele próprio. Em seu silêncio pressentia algo singularmente intenso a desvelar-se em seu destino. Aconteceu-lhe, ao contemplar o mar, o que mais tarde denominaria “sentir-se ser” e “sentir-se ser” representava, para ele, uma perturbadora e irresistível maneira de ver a si mesmo tomando parte no mundo e, ao mesmo tempo, ausente dele; uma forma de desviar-se, de perder-se para vivenciar as angústias e as alegrias imanentes a um tortuoso processo de redescobrir-se. Tudo ressurgia sob uma perspectiva nova. Minutos antes, parecia-lhe natural pensar que, naquele instante, era ele, e não seus colegas, quem estava a fazer nada, apático. Agora, ao acontecer-lhe de “sentir-se ser”, interpretava as coisas como que pelo avesso: “são eles, e não eu, que permanecem passivos”. Não fazer nada passou a significar, dali em diante, fardar-se, diplomar-se e seguir numa direção e cadência que não lhe seriam ditadas pela sua própria natureza.

sexta-feira, 8 de abril de 2022







 O Velho Lutador


Le Funambule



Quando um boxeador está desferindo um golpe, ele baixa a guarda. Nunca estará tão vulnerável como quando em busca de uma grande e inédita vitória. Talvez por isso muitos não se atrevam a deixar as poltronas para subirem ao ringue. Acomodados em suas poltronas não se sentem vulneráveis. O Velho também passou longos anos de sua vida acomodado numa poltrona. Parecia bem como todos ao seu lado, mas não estava. um dia percebeu que poltronas podem ser perigosas e começou a se sentir desconfortável. Não lhe fizeram bem. Deram-lhe coceiras...


Nesse dia o Velho, embora velho, pressentiu que uma decisão começava a se delinear em seu peito. Nervoso, pressentia as consequencias, pressentia o que enfrentaria em silencio até que sua voz fizesse calar todas as outras que passaram a assombrá-lo desde o momento em que caíra. Sabia que teria inicio a maior luta de sua vida; uma luta que se desdobraria em si mesmo. A idade que para muitos é um convite a se acomodar, para ele se tornara uma vantagem. Mais experiente sabia que quem se arrisca a viver a grande luta de sua vida em algum momento precisa aprender uma importante lição, e ele a aprendeu. Custou-lhe caro o aprendizado, mas hoje sabe o que os que não subirem ao ringue jamais saberão. 


Anos atrás sofreu um nocaute, é verdade, mas engana-se quem pensa que o Velho, embora velho, fora aniquilado. Na queda tentara se agarrar às cordas, mas seus braços, conquanto hipertrofiados e fortes, não foram capazes de suster o peso daquela derrota. Fora à lona, como também sucede aos grandes pugilistas, e nela se deixou ficar enquanto observava o mundo dar-lhe as costas para reverenciar o novo campeão. O Velho caíra enquanto atacava, e não havia quem o protegesse. 


Quando as luzes do ginásio se apagaram, o Velho se viu sozinho. Sentia-se derrotado, desnorteado, mas, sobretudo, sentia-se sozinho. A sequência de golpes que lhe fora imposta, se não severa demais, como argumentam alguns leigos afundados em suas poltronas, indubitavelmente, atingira-o em pontos críticos. “Você é forte. Muitos teriam sucumbido em seu lugar. Deveria dar-se por satisfeito em ter saído inteiro daquela luta.”, afirmam os amigos que presenciaram sua queda. Por mais que repitam isso quando se encontram, o Velho, embora velho, não está nada satisfeito, e orgulhoso como é, desconfiado como é, se não vê em tal argumento um motivo para se consolar, muito menos se dá por convencido. Ademais, ele não sente ter saído inteiro daquela luta, como pensam seus amigos. Algo lhe fora subtraído e o Velho o quer de volta. Quando ainda convalescia, era possível notar que a derrota o abalara profundamente, mas algo inominável deu-lhe a firmeza de que necessita um homem para retornar às origens e recomeçar. O Velho teve de engolir o próprio orgulho, reconhecer erros e se tornar um aprendiz novamente. Como ele próprio o diz “A derrota me mandou para o fim da fila de uma hora para outra, e eu não conseguia compreender como aquilo havia acontecido. Mais do que um título eu havia perdido a mim mesmo."


"Todo mundo dizia para eu seguir em frente, mas eu não tinha como simplesmente seguir em frente. Precisava descobrir aonde me perdera, precisava voltar às origens. Algo em mim dizia Volte, mas eu não voltava. Eu insistia em ouvir quem jamais estivera aonde eu estive. Eu insistia em ser quem eu nunca fui e quanto mais insistia, mais me perdia. Foi quando a urticária começou. A pele avermelhada, a coceira, os exames, os remédios, a ansiedade e o medo de tudo aquilo piorar numa espiral sem fim. Meu tempo estava acabando. Eu estava me acabando. Meu corpo falava, gritava, coçava mas eu não o ouvia até o dia em que compreendi que se havia uma solução efetiva para mim ela não estava nos remédios. Ela estava na luta. Foi quando deixei de ser um amedrontado espectador de mim mesmo para me tornar-me novamente um lutador."


Espectadores assistem; lutadores, lutam, e o Velho, embora velho, ergueu-se da poltrona e aceitou a luta para a qual a vida o destinara.


Ele não está disposto a morrer sem recuperar o que, um dia, perdeu. Terá sua oportunidade, terá sua revanche.


Mais do que uma revanche, o que o Velho busca chama-se Redenção, e redenção é o nome que dá a um gênero especial de vitória. 


É isso mesmo, o Velho, embora velho, sem títulos e desacreditado por muito dos que hoje vivem acomodados em poltronas, subirá ao ringue ainda mais uma vez. Se acaso perderá ou ganhará é difícil vaticinar. No momento, o que o Velho sabe é que não poderá passar sem lutar a sua grande luta. Não encontrará a paz que procura se jogar a toalha. Por isso, pacientemente, obstinadamente, prepare-se para quando a grande hora chegar.


Falemos um pouco de sua trajetória até o fatídico dia. O Velho tinha um futuro promissor. Ganhara lutas importantes. Por isso, embora lamentem sua derrota seus amigos dizem que é um vencedor, mas ele não se considera vencedor, simplesmente, porque para ele a luta ainda não terminou. O que está no fim é um difícil round de sua vida. Muitos não entendem isso e o desacreditam. Às vezes, com um verniz de boas intenções, aconselham-no a se aposentar, a  refestelar-se numa poltrona, orgulhar-se de seu passado e acompanhar os novos boxeadores. Mas o Velho, embora velho, não é um aposentado e nada vê em seu passado para se orgulhar se se esquivar de sua grande luta.  O Velho não chegou até onde sabe que pode chegar, ou antes, até onde algo em seu coração lhe diz ser possível, necessário, chegar. 


Sim, como disse, não se questiona que o Velho quando jovem tinha uma carreira promissora pela frente e os títulos conquistados até aquela luta não deixavam dúvidas sobre sua força e envergadura. Entretanto, depois de ter visto e ser visto sob a perspectiva de quem esteve na lona, tudo mudou. Com a derrota, sentiu como se todos os títulos tivessem sido perdidos e mais do que isso: sentiu ter perdido parte da confiança que o mundo e ele próprio depositavam em sua pessoa, e isso ele quer de volta, pois sem confiança em si mesmo homem nenhum não pode viver. 


O Velho envelheceu rapidamente depois que sua confiança foi ao chão. Tornou-se desconfiado e ansioso em relação ao seu potencial e futuro. Não pensou que perderia, mas sem dar-se conta, perdera a confiança para lutar e quando esta confiança é perdida, tudo está perdido para um homem como ele. Sem confiança, resta-nos a lona ou ocupar um lugar na platéia. Quando se perde a confiança, tornamo-nos aposentados à espera de que a campainha soe para nós. 


“Não há tempo a perder”, diz de si para si quando convidado a fazer parte das distrações e dos afazeres cotidianos dos aposentados. Assim pensa, porque o Velho, como disse, tem pressa em reaver o que perdeu. Além disso, excita seu coração a ambição de conquistar o grande cinturão dos boxeadores. Do Velho foram tomando títulos menos significativos e os que ainda conserva na parede de seu quarto apenas servem para rememorá-lo de sua derrota. Se fosse um aposentado como muitos por aí, olharia com nostalgia e orgulho para aqueles diplomas e fotografias, mas o velho sendo como é, ao mirá-los é possuído por uma raiva que o motiva nos treinos.


Embora durante muito tempo afirmara ter perdido para o mundo, esta é uma asserção sobre a qual cabem mais algumas palavras. Ela não se encaixa com exatidão ao seu caso se não acrescentarmos que o Velho perdera para o mundo porque antes disso perdera para si mesmo. Com a queda, aprendera que para vencer o mundo cabia a ele vencer-se. Deste modo, luta consigo próprio, todos os dias, longe dos holofotes e do público. Assim transcorre sua vida: a cada treino, uma luta e sempre com um adversário mais forte que o anterior, pois, como disse, a cada luta o velho torna-se mais forte, mesmo quando é derrotado. 


Perdidos os títulos, disseram que o Velho estava velho, que o Velho estava acabado. Quando começou a dar ouvido a essas pessoas tudo começou a se perder. Que os outros desconfiassem dele pouco ou nada mudaria, mas quando ele próprio começou a desconfiarde si mesmo, refugiou-se numa poltrona, e lá morreira se a urticária não o chamasse de volta o ringue. Se tudo estava perdido, nada mais tinha a perder. Deste modo, pouco a pouco, recrudesceu dentro de si o desejo de lutar mais uma vez, e sendo esta a última, teria de ser a grande luta de sua vida. O velho decidiu, então, treinar com afinco e por conta própria, mas não só: o velho é orientado pelos grandes boxeadores de todas as épocas. 


Depois que resolveu se levantar da poltrona, deixou de lado a perspectiva dos sabichões. Não compartilha mais das mesmas opiniões. Na verdade nunca as compartilhou. Sempre se sentiu um deslocado. Se ali se conservava outra razão não vê senão o medo de se arriscar. Era o que tinham em comum. O modo de vida dos sabichões, que vivem entretidos em lutas arranjadas, esquivando-se de seus verdadeiros e mais íntimos combates, deu-lhe coceiras. O que podem lhe ensinar se nunca subiram ao ringue de verdade?


Se bem que tenha tratado o Velho como um boxeador, não, ele não é precisamente o que entendemos como boxeador. Não que o Velho também não o seja, pois acredita que viver é lutar, e neste sentido a ele parece que cada um luta do seu jeito. Mesmo aqueles que preferem assistir, refestelados em confortáveis poltronas, aos grandes boxeadores, vez ou outra precisam ir à luta. Seja como for, o modo de o Velho lutar é escrevendo. Ao Velho somente importa a sua luta, a sua revanche. Ele não quer viver como toda a gente. O Velho não ter uma vida normal. Ele não quer estar junto de seus amigos aposentados na platéia. O Velho, embora velho, só quer saber de treinar; o Velho, embora velho, só quer tornar-se mais forte. Ele quer tomar de volta o que lhe fora tomado. O Velho quer o grande cinturão. Se para tal, precisar atacar novamente, ele o fará, mas dessa vez o desfecho será outro. O Velho aprendeu uma importante lição: nunca se está tão vulnerável como quando se está atacando. Por isso, quem parte em busca de um sonho precisa estar preparado para as derrotas. Elas fazem parte da vida de todo vencedor e quem acha que é se esquivando da luta que não enfrentará dificuldades e derrotas está profundamente enganado. São as dificuldades e derrotas que forjam os grandes campeões.




Petrópolis, 8 de abril de 2022


quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Redenção




Foi num domingo que tomou uma daquelas decisões que definem um caráter e seu destino. Àquela hora da manhã, não somente em sua casa mas em toda a rua, sua mãe e amigos ainda dormiam quando ergueu-se da cama decidido a tirar a velha bicicleta do pai da garagem. Se quisesse descobrir – e ele queria – o que seu pai sentia nas aventuras que lhe narrara repetidas vezes ao longo de sua infancia, e com um entusiasmo contagiante, teria de seguir em frente. Marcaram profundamente seu coração de menino, aquelas noites, logo apos o jantar, em que se deitavam na rede esticada sob um ceu estrelado e conversavam sobre as excursoes do pai. «Quando eu vou poder ir com você, pai?». «Quando for maior, meu filho!». «Promete?». «Prometo, mas agora é melhor você dormir.». O menino relutava em separar-se do pai e de suas estorias, mas cedia, pedindo-lhe, entretanto, que falasse mais um pouco até que pegasse no sono. Adormecia em seu colo e talvez sonhasse com as aventuras que o pai continuava a narrar:“Há dias em que as nuvens encobrem as montanhas e pedalamos envolvidos por elas. Não nos é possivel ver quase nada a frente. Muitas vezes, a dificuldade é tamanha que desconfiamos estar nos desviando de nosso destino. Receosos de nos perdermos ou nos acidentarmos, frequentemente pensamos em parar, e continuamos. A atmosfera e as emoçoes se tornam tão intensas que nos absorvem completamente. Em vão tentamos compreender.  Se nao encontramos as palavras que possam fixar o que sentimos é porque algo em nós vai se desfazendo, e com ele a propria significação que damos às coisas e a nos mesmos. A experiencia do desconhecido transforma nossa realidade, dissipa-a, pulverizando antigos significados. Angustia. Ja não somos mais quem eramos, e não encontrando sustentação nem mesmo em nossos mais arraigados preconceitos somos arrastados para o vazio que se abre em nossas almas. Não mais nos reconhecemos, e so podemos  gritar. Um grito angustiante, selvagem, inutil. Estamos sozinhos. Ninguém pode nos ajudar. Nesse hiato entre o que éramos e o que seremos, as ficções se alternam. Nenhuma delas prevalece. Se pensamos que agiremos segundo nossas expectativas, no instante seguinte, nos questionamos como podemos ter sido tão ingenuos. Num lapso de tempo, somos muitos e nenhum. O que nos move em meio ao desconhecido é a necessidade de reconhecermo-nos, sermos reconhecidos. Tudo se passa tão inconscientemente quanto pedalamos ou narro minhas aventuras, mas acreditamos agir de maneira consciente. Como pode um homem suportar conscientemente a duvida, a sensação de desequilibrio e a dor do desamparo de estar sob a influencia de forças desconhecidas? A mentira e o sonho são os caminhos para não darmos um fim a nossas vidas: ou nos mantemos na planicie, ou seguimos escalando nossa montanha. Proximo ao cume, descobri-me um desconhecido, solitario, nuvem de fragmentos que ora se distanciam, ora se reagrupam como num caleidoscopio. Ninguem é solido, uno e indivisivel... As imagens mudam segundo o acaso e as circunstancias. Sem a coragem de vivenciar a inconsistencia dos sonhos, não realizamos a travessia. Nossa realidade mais intima não vem à tona, não se torna consciente. Preocupados em não perder, nos perdemos em meias verdades. Não nos realizamos. Permanecemos, inacabados, escondidos atras de ficções  como crianças assustadas. Não crescemos. Se, por outro lado, encaramos o medo de viver e seguimos em frente, pouco a pouco, vamos nos sobrepondo a nos mesmos. Enlouquecemos. Não porque as incertezas deixaram de nos acompanhar, mas porque seguiremos, dali em diante, nossas vidas com a convicção de que outra realidade não nos teria sido possivel.

sábado, 13 de abril de 2019

Do Que Se Trata?

 

Capa do Livro - Obra do artista plástico e amigo Betto Pereira



I celebrate myself, and sing myself,
And what I assume you shall assume,
For every atom belonging to me as good belongs to you.

Walt Whitman

                                                                           
Trata-se de minha inocência minada, de minha inocência pisada, de minha inocência perdida. Trata-se de remontar às origens do mundo e de minha própria história. Trata-se de Caim e Abel, de um combate espiritual. Trata-se de não negar Deus, mas de tornar-se Deus; de não recusar a coroa ao rei, mas de se fazer rei. Trata-se de não rezar mais, de não mais pedir a benção, mas de dar a benção. Trata-se de criar, de se tornar “o divino que sorri e brinca”, de Fernando Pessoa. Trata-se de obstinadamente demonstrar a existência em si de algo que “vale a pena”. Trata-se de arriscar-se a perder a vida na aventura de gerar e viver outras vidas: a destes personagens que carrego no peito. Trata-se de esquecer, de recomeçar, de vir a ser criança novamente. Trata-se de tomar consciência de si mesmo. Trata-se de emocionar-me, de tornar-me humano. Trata-se de ceticismo e devoção. Trata-se de deixar de ser um impassível animal de rebanho, de reconhecer-me no servo que caminhava cabisbaixo ao sol, sob o temor do chicote de seu senhor, e, ainda que ciente do risco de ser fustigado no rosto e cegar, vira-se exibindo ao seu dominador uma boca enfadada de murmurar “Sim, senhor.” e dois olhos faiscantes a protestar: “Isso já foi longe demais, basta!”. Trata-se de ser tomado pelo mesmo furor deste homem em desejar mais que os outros lhe ensinaram que poderia desejar. Trata-se de atingir o que ninguém ousa atingir. Trata-se de sujeitar-se a ser perseguido, achincalhado, a correr o risco de padecer de fome e frio e abreviar seus dias por acreditar em algo maior que a própria vida. Trata-se de acreditar na liberdade do mundo do faz de conta, na potência criadora da mente humana. Trata-se, também, de dinheiro, mas de algo que nem todo dinheiro do mundo seria capaz de comprar. Trata-se de receber sem pedir, de dar aos meus pais e à minha mulher o que lhes é de direito por terem me estendido as mãos quando eu mais necessitei. Trata-se de se reconhecer vítima não meramente do meio, como crê toda gente comum, mas igualmente de si mesmo, de suas próprias idiossincrasias, virtudes, fraquezas, ambições e vícios. Trata-se de examinar a questão do suicídio, da morte, da iniquidade e da benevolência humanas, do bem e do mal. Trata-se de ouvir mais a si próprio que aos outros, uma vez que se refere menos ao senso comum que à intuição. Trata-se de, ao amanhecer, ser tomado pela angústia de escrever, de um parto sem hora marcada. Trata-se de uma necessidade diária de solidão. Não se trata, de modo algum, de não sentir dor, de não se sentir infeliz, mas de mesmo nos momentos mais difíceis não desistir de si mesmo porque compreendeu que não conhecerá o paraíso sem antes cruzar o inferno. Trata-se, então, de na fraqueza reconhecer a própria força, e na aparente insignificância e esterilidade de seus dias discernir o que há de grande e belo em seu amanhã. Também não se trata de se pensar completamente distinto dos demais - pois isto é pensar como eles, é ser como eles - mas de na multidão não me perder, não desacreditar no que apenas meus olhos serão capazes de mirar: o meu caminho. Trata-se, então, de questionar a própria noção de igualdade. Trata-se de um sentimento de raiva, de revolta que me lança ao “tudo ou nada”, contra tudo e contra todos. Trata-se de a um só tempo ir contra mim mesmo na defesa de minha pessoa. Trata-se de uma lacuna em meu ser, do martírio de uma ferida que não se cicatriza, da coexistência em meu peito de demasiada carência e um não menor amor-próprio; da necessidade de ser amado, lembrado, mas de negar-se a pedir, a fazer qualquer concessão por um gesto de carinho ou reconhecimento. Trata-se de justificar não a ociosidade, mas o gênio; não o mal, mas o bem. Trata-se de acusar. Trata-se de antes morrer de pé a viver de joelhos. Trata-se de considerar inadmissivel a existência de uma divindade se não puder participar dessa divindade. Trata-se de ser impossível, de afigurar-se irredimível se contentar com menos do que se deseja e admira. Trata-se de buscar em mim mesmo o meu próprio mundo, o meu próprio deus, o meu próprio inferno e paraíso. Trata-se da busca pela minha individualidade. Trata-se de ser homem sem deixar de ser menino; de ser humano sem deixar de ser divino. Trata-se de ser mais um na multidão ao mesmo tempo em que se dá conta de haver em si uma multidão de homens e mulheres. Trata-se de ser a regra e a exceção. Trata-se de ser contraditório, caprichoso e incoerente por não ser um, mas muitos e, por isso, ser tão incompreendido. Trata-se de mostrar-lhes “Ah! Vejam quanta injustiça suporto por não aceitar viver como vocês!”. Trata-se de um acerto de contas. Trata-se de minha vingança e de minha redenção. Trata-se de tudo o que eu tenho, de tudo o que eu sou. Trata-se de se entediar com a realidade, mas desta não prescindir. Trata-se de minha literatura, de dar vida a um mundo que satisfaça meu desejo de liberdade, comunhão e distinção que existe não apenas em meu coração, mas no coração de cada homem.Trata-se de aceitar o meu tempo. Trata-se de não condenar meu orgulho e revolta, mas de criar minha própria linguagem, revelar minha identidade. Trata-se, enfim, de tornar-me um grande escritor ou nada ser nesse mundo.