segunda-feira, 10 de junho de 2024

O Salto




 O Salto

 


 quem subestimará este relato, julgando não passar de devaneio de alguém com o qual acredite não ter nada em comum. Não se aterá à sua universalidade, limitando-se apenas divisar na decisão de não permanecer acuado um gesto de coragem, ou loucura. A bem dizer, após tantos anos, ele próprio não sabe o que pensar. Nem mesmo sabe dizer se conscientemente tomou alguma decisão porque, se o fez, é-lhe impreciso afirmar até que ponto ela não teria se dado de maneira instintiva, reflexo meramente motivado pelas circunstânciasAssim, slhe dizem ter demonstrado coragem ou loucurade imediato objeta terem sido as de um homem que salta dsexto andar de um edifício em chamas. Este homem sabe que provavelmente encontrará a morte, mas reserva a si o direito de, sendo ela inevitável, escolher como não morrerá. 


Há mortes e mortes. 


Até o último momento não sabia qual seria o desenlace de sua situação. Que este se aproximava era-lhe evidente e inevitável ; ao mesmo tempo, parecia hesitar em reconhecê-lo, como se preferisse o martírio de um sufocamento à volúpia de um salto no vazio. Foi-lhe terrível deparar-se com toda a extensão da impotência humanamas o que realmente o intimidou, foi sentir pesar sobre si a responsabilidade de descobrir um modo de enfrentar a angústia suscitada por uma situação que fugia ao seu controle e o consumiaMergulhado em incertezas, pressentia, no recrudescimento de seu desassossego, que se avizinhava do fim. Não atinou, não poderia, mas era a aproximação da vida - e não de seu desfecho - que o aterrorizava. Ele morreria, mas não chegara seu fim.  Enquanto os gritos oriundos de outras salas o exasperavam, esforçava-se em organizar e racionalizar os fatos, sentimentos e pensamentos que o levaram até ali, como se buscasse uma justificativa, qualquer coisa que fosse capaz de apaziguá-lo. Em vão. Acabava sempre por reconhecer nos limites de cada justificativa os mesmos limites de sua razãoEsperava que esta pudesse socorrê-lo - e até então dela se servira com algum êxito - a encontrar outraposições dentro da realidade admitida no interior daquelas paredes, mas tal realidade já se esgotararevelando a falibilidade da razãoSempre cabe em qualquer um de nós certa insatisfação, e vamos mudando de posição, procurando acomodá-las, da melhor forma possível,segundo nossa condiçãoEra o que vinha fazendo. Écomo age um homem antes de deparar-se com seu limite; agora que se encontrava diante dele, talvez por desespero ou apenas por força do hábito, tentou uma última vez abrir a porta, e ao tocar a maçaneta o calor advertiu-o que o incêndio tomara todo o seu andar. Foi quandocom a testa recostada na porta, abatido, reconheceu na incerteza de um futuro que se abria à suas costas sua única saída e, no fim de suas possibilidades, seu desespero converteu-se em novas forças. Levado por um impulso fundamental arremessou sua cadeira à janela para, num só tempo, encher os pulmões de ar e este de gritos como uma criança ao deixar o útero materno. Sentiu que precisamente isto se chama viverinterpretando, anos depois, toda sua vida até aquele instante como uma longa gestação. É assim que conserva em sua memória a lembrança daquele incêndio; e, se bem que a despeito do que vivera ainda hoje não acredite em milagres, nem saiba mais da vida do que sempre soubera, sabe que ela seria inconcebível se eles não existissem.


Petrópolis, 31 de dezembro de 2015.