terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Pré-Estréia de Pretensas Virtudes - Primeiro Livro

Capa do Livro - obra do grande artista plástico Betto Pereira


... À época, como quem procura, começa a escrever. Num primeiro momento não reconhece em sua escrita um trabalho. Nem mesmo se pensa escritor. Apenas quer dar livre curso aos sentimentos, mostrar não ser um vagabundo qualquer, convencido está de poder provar que também seus erros e defeitos têm valor. Se no mundo à sua volta figuram falhas condenáveis
, sente em si o embrião de um outro no qual estes mesmos erros e defeitos serão essencias para dá-lo vida e protegê-lo. Refugia-se neste seu mundo. Não vê outro meio de seguir livre. Não quer retornar à rotina dos quartéis, nem se ocupar com nada que lhe amesquinhe a vida. Não está disposto a se submeter a um emprego regular de horários fixos. A simples ideia de passar um dia confinado num escritório, sujeito aos mandos e desmandos de um chefe, é-lhe abominável. “Só faço isso se não tiver outra alternativa.”. A mulher balança a cabeça, parece não entender, mas o apóia. Às vezes, ele dá algumas aulas particulares, mas é o salário dela que arca com as despesas do casal. Faz dois anos que se desligou do IME e nada sugere que não esteja perdendo tempo. Os fatos não sustentam sua versão de ter caído em algo maior, antes corroboram a opinião corrente de que sem diploma ele não será nada. “Já poderia ter concluído a graduação e estar empregado.” “É inteligente”, atestam, “Ou não quer nada com a vida, ou está se sabotando.". "Se não vai trabalhar, ao menos deveria procurar um psicólogo. É evidente que há algo errado.” Não lhes dá ouvidos. Sua recusa a se submeter a um analista não é menos veemente que a de se submeter a um chefe. A pressão ao redor recrudesce, mas não cede. Sente que não pode recuar. Passa os dias lendo e escrevendo. Stirner, Hermann Hesse, Lima Barreto, Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Henry Miller, Dostoiéviski e outros artistas lhe fazem companhia. “ Mas estão todos mortos!”. “Não para mim”. “ Você precisa de amigos de carne e osso. Não sente falta de gente?”. Pouco a pouco procura menos os amigos. Pilhas de livros se acumulam pelo chão de seu quitinete em Botafogo. O que ganha com aulas particulares, gasta em sebos e livrarias. Ninguém compreende o que ele está fazendo. Novas censuras se somam às antigas. Um dia acompanha a esposa a um almoço de família, e um dos convivas - o mesmo que anos depois, ao tomar conhecimento de seus primeiros êxitos no mercado financeiro, o puxou a um canto daquela mesma sala para lhe pedir que aplicasse suas economias em ações - não hesita em disparar: “Não pensa em seus pais? Não vai se formar?” Não tem a menor intimidade com essa pessoa, nem com ninguém ao redor daquela mesa para que se permitissem semelhante atrevimento. Aquilo o pegou completamente desprevenido. Sua impressão foi de alguém ter sacado um revolver e o descarregado em sua pessoa à queima roupa, sem a menor chance de defesa. Logo entende o sentido das perguntas. Nada tem a ver com seus pais. Além de vagabundo, agora é também parasita. Vivendo às custas da mulher, incapaz de se sustentar, por vezes, não se sente um homem de verdade. Sem dinheiro, é visto com desconfiança. Torna-se um alvo, um homem marcado. Está exposto a outras condenações sumárias. Sua situação o envergonha, o revolta e o humilha. Procura uma defesa, mas não fará como todo mundo. Não correrá atrás de titulos acadêmicos. Não correrá atrás de emprego.  Sabe que não são estas recusas que fazem dele um alvo. O que faz dele um alvo é não ter dinheiro. Sabe que para calar essa gente, precisa falar a mesma língua. Precisa de dinheiro. Se tiver dinheiro não lhe ousarão apontar o dedo. Só que não fará como eles. Não procurará seu ganha-pão no mercado formal. Encontrará um outro jeito. Começa a separar trabalho de dinheiro. Não são a mesma coisa. Trabalho é o que o faz sentir-se vivo, o que dá sentido à sua vida. Dinheiro é o que paga suas contas, não é o que tem em vista. Não é o que determinará se ele seguirá ou não o que sua intuição lhe diz. Não ter dinheiro não será sua desculpa. "Não farei como todo mundo!". Desde pequeno observa com repugnância as pessoas se acomodarem a vidas que não lhes agradam apenas por dinheiro. Vê as pessoas se matando por dinheiro. Está decidido a não seguir o mesmo caminho. Foi por isso que abandonou o colégio técnico. Foi por isso que jamais se lamentou por ter se desligado do IME ou abandonado a UFRJ. Teme perder vitalidade fazendo o que não lhe propicia prazer. Teme reduzir sua vida a dinheiro e títulos acadêmicos. Os caminhos tradicionais não lhe interessam. Se neles prosseguisse seria por mera sujeição às convenções ou ao dinheiro. Seria por preguiça ou covardia. Teria a casa dos sonhos, carros do ano, um belo álbum de viagens, mas não teria uma vida de verdade. Seria um escravo moderno. Seria o seu fim. Mil vezes seguir sendo alvo de críticas a ostentar as pretensas virtudes dos escravos modernos. É evidente que não o agrada não arcar com suas próprias despesas, mas sua decisão de não repisar os mesmos passos de seus amigos prevalece. Surge o impasse. Enquanto procura solucioná-lo, aprende a ser paciente, a esperar, e com quanta impaciência espera. O dinheiro é seu calcanhar de Aquiles. Tudo parece se resumir a tê-lo ou não. Senhor dos destinos, é o todo-poderoso. Todos o idolatram. Para os pretensos homens, é o tamanho do pênis. É sinal de virilidade. Para as pretensas feministas, é o símbolo do empoderamento feminino. Para os pretensos revolucionários, é causa e consequência das misérias humanas. É a medida do homem. Em seu nome desfilam numa marcha insensata a esquerda e a direita, os neoliberais e os marxistas. Vê os amigos caírem de joelhos, sujeitarem-se, brindarem e se embebedarem em nome desse bezerro de ouro. Orgulhosos de si mesmos, não resistem ao seu poder de sedução: tornam-se vassalos dos poderosos. Sacrificam suas vidas às grandes corporações. Estão ganhando cada vez mais dinheiro. “Evoluímos!”. Os anos passam e o passado retorna. É sempre o mesmo enredo. Só o cenário muda. O tempo das Quatro Rodas e dos posters das coelhinhas da Playboy ficou para trás. Agora colecionam prostitutas de luxo e carros importados. Acreditam ter encontrado o caminho das pedras. Acreditam terem se tornado homens de verdade. Querem ensiná-lo o caminho. Insistem em mostrá-lo um atalho. Numa festa de casamento o convidam para acompanhá-los a um puteiro. Noutra, chamam-no ao estacionamento para ver os carros da galera. “Em pouco tempo você poderia estar como a gente.”. Ele desdenha. Continuará a pé. Desconfia de atalhos. Não ignora o preço de suas escolhas. Mais uma vez, não se deixa seduzir. Sente o que está por trás de tudo aquilo. Nada tem a ver com a paixão por carros e mulheres. Novamente, não os seguirá. É apaixonado e ambicioso, mas suas paixões e ambições são de outra natureza. Os amigos se ofendem. Não se esforça em se explicar ou esconder a repugnância por toda aquela ostentação. Ele os toma por presunçosos. Eles, por outro lado, o veem como fracassado. Se afastam cada vez mais. Falam línguas diferentes. Não se compreendem. Não compreendem que as ambições de um homem podem ser grandes sem gravitarem em torno do dinheiro. Não faz dele seu ídolo, nem o desejo de possui-lo se torna sua mola propulsora. Não vê sentido em ter cada vez mais à custa de sua liberdade. Se não é hipócrita tampouco é ingênuo: sabe que precisa de dinheiro se não quiser se escravizar. Sabe que precisa de dinheiro para se defender. Decide investir o que ele e a mulher conseguem economizar. O Brasil vive o boom das commodities, e ele descobre a Bolsa de Valores. Será a solução de seu impasse. Enquanto vai se familiarizando com o mercado acionário, segue lendo e escrevendo. Continua errando. Dúvidas e angústias o invadem. Os resultados nem sempre são favoráveis, mas insiste. Aos seus olhos se defende com a ideia de que um dia será recompensado. Será sua vingança e redenção. Agarra-se a essa ideia. Sua realização se torna seu único desejo e desespero. Foi tudo o que lhe sobrou. Absolutamente despojado do supérfluo, faz as apostas de sua vida. Novamente não há plano B. Parece estar revivendo os anos anteriores ao seu ingresso no IME. Novamente o chamam de vagabundo. Novamente a procura de outros como ele. Novamente em busca de algo maior que dinheiro. Sempre essa busca de algo maior. É sua ideia fixa. As semelhanças entre o presente e o passado se sucedem e alimentam sua esperança de que tudo correrá bem. O passado continua presente em sua vida. Tudo recomeça. É o Eterno Retorno. Novamente, uma ruptura radical se aproxima. Sua intuição lhe diz que logo deixará o Rio. “Para onde?”, pergunta sua mulher. Não lhe diz. Não tem a menor ideia de seu proximo destino. Sabe apenas que a vida o espera em outro lugar. Seu horizonte começa a se modificar. Sente uma irresistível atração em aventurar-se em sua direção. Não pode evitá-la, não quer evitá-la. Aos poucos entrega-se à sua intuição. Reencontra a fé em si mesmo. Confia em seu destino. “Ele mudou depois que saiu do IME. Parece ter perdido a razão”, comentam os amigos. Um vazio se forma a sua volta. Tempestades se anunciam. Sente estar sendo testado. Os meses passam, e as infelicidades e incertezas não se desfazem. Seu inferno parece não ter fim. Às vezes o nevoeiro se torna menos denso e pode ver alguma coisa. Nunca é tanto quanto gostaria, mas é sempre o necessário para continuar. Foi assim naquela tarde de novembro quando sua mulher ligou do trabalho, com a voz embargada, comunicando que ele recebera uma menção honrosa por seu prematuro livro de crônicas. Ao desligar o telefone, chora, novamente um copioso choro de felicidade e alívio. Sua intuição não o enganou. A vida não o abandonou. Sente ter alcançado o ponto em que não lhe será possível voltar atrás. Ou se tornará escritor ou nada será. Passa a rechaçar com mais veemência a ideia de procurar emprego e o argumento de que um diploma não o atrapalhará a escrever. Começa a lhe ficar claro o porquê de passar tantas horas lendo e escrevendo quando todos lhe cobravam que desse outro emprego ao seu tempo: quer liberdade para seguir alimentando e protegendo o que acredita ser seu autêntico destino. Arrastado por um impulso decisivo não percebera, mas naqueles dias de angústia, vividos entre leituras descosidas e esboços autobiográficos, caminhava em direção a sua própria linguagem. O que sempre buscou assume contornos inesperados: nunca um objetivo definitivo, antes uma conquista diária. Se parecia errar era porque não tinha consciência de tudo o que lhe sucedia. Revisitando seu caminho tem a impressão de o tempo todo ter sido conduzido por algo maior do que ele próprio. Seria pretensioso dizer que foi ele quem escolheu seu destino. Ele não escolheu o que se tornaria. Apenas obedeceu algo em si mesmo. De um jeito ou de outro, estamos sempre obedecendo. É assim que chegamos aonde chegamos. Foi assim que chegou ao seu livro. Se hoje não se imagine outro, não se queira outro, jamais se pensou escritor. Simplesmente aconteceu...