terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Making a Book

Dedicatória

Dedica seu livro a todos que lhe cruzaram o caminho e sem desconfiarem de coisa alguma estimularam-no a escrever - em especial àqueles com os quais conviveu numa prestigiada instituição militar de ensino. Orgulhava-se de se pensar um deles até o dia em que percebeu que não era: apenas estava entre eles. Se com essa percepçao ainda não viesse a saber quem era e o que faria consigo mesmo, soube, entretanto, quem não era e o que não faria.

Nos anos seguintes viveria os silenciosos e profundos desdobramentos de sua descoberta. Considera-a a mais significativa que fez sobre si mesmo, pois ao mesmo tempo que lhe subtraiu o alento para seguir na companhia de seus amigos encorajou-o a enveredar pelo solitário caminho da escrita, onde suas descobertas teriam continuidade e sua vida, um sentido. 

Tivesse a ignorado, ignoraria a si mesmo. Seria mais um a engrossar a multidão dos que batem ponto num emprego qualquer, desanimado e sem perspectivas, desperdiçando sua vida fazendo o que não acredita apenas por dinheiro ou para dizer aos outros que havia se tornado alguém. 



 


"POR NÃO COMPREENDERMOS A SIGNIFICAÇÃO DAS PALAVRAS, NEM EU NEM MEUS AMIGOS, UMA COISA SE TORNOU MUITO CLARA: QUE HÁ MANEIRAS DE NÃO COMPREENDER E QUE A DIFERENÇA ENTRE A NÃO COMPREENSÃO DE UM INDIVÍDUO E A NÃO COMPREENSÃO DE OUTRO CRIA UM MUNDO DE TERRA FIRME AINDA MAIS SÓLIDO QUE AS DIFERENÇAS DE COMPREENSÃO. TUDO QUANTO OUTRORA EU PENSAVA TER COMPREENDIDO DESFEZ-SE E EU FIQUEI COMO UMA LOUSA LIMPA. MEUS AMIGOS, POR OUTRO LADO, ENTRINCHEIRAVAM-SE MAIS SOLIDAMENTE NA PEQUENA VALA DE COMPREENSÃO QUE HAVIAM ESCAVADO PARA SI PRÓPRIOS. MORRERAM CONFORTAVELMENTE EM SUA PEQUENA CAMA DE COMPREENSÃO, PARA SE TORNAREM CIDADÃOS ÚTEIS DO MUNDO. SENTI PENA DELES E SEM DEMORA ABANDONEI-OS UM A UM, SEM O MENOR PESAR."

HENRY MILLER



Paris, outubro de 2018



sexta-feira, 23 de março de 2018

Desconstrução

Decide preparar uma xícara de café. Enquanto espera a água ferver, dá uma espiada no jardim em frente ao seu apartamento. Está nevando novamente. Lembrou-se da senhora que mora ao lado dizer que este mês de março está sendo atípico em Paris. Não era para estar nevando. Não a questiona. Para ele, tudo parece atípico neste momento de sua vida. Sente que há algo acontecendo consigo em Paris. Não sabe dizer o que é, mas deseja que continue. São 4:14. A mulher e o filho estão dormindo. Daqui a pouco acordarão. Há horas está sentado próximo ao aquecedor. Não consegue dormir. Seus olhos vão de um lado a outro relendo os capítulos anteriores. Está satisfeito com o que escreveu ontem embora não ignore que dali a instantes deixará de estar. É sempre a mesma coisa. Por hora, no entanto, ainda acha que está bom. Conseguiu encontrar o ritmo. No texto que começou a escrever não o encontrou. Sabe que está perdido. Relia os anteriores na esperança de reaver o fio da meada. Em vão. Melhor preparar o café e colocar uma música, pensa. Faz parte de seu ritual. Acredita que a música e o café o ajudam a encontrar o ritmo de um texto, e com ele, as palavras. Foi assim à tarde, quando estava num Café próximo ao seu apartamento. Ao entrar, percebeu que tocava Cake. Há anos não ouvia a banda, acha que desde que saiu do IME. Uma torrente de lembranças sobreveio-lhe. Jamais esqueceu as rodas de samba na Praia Vermelha, as viagens pelo país com os companheiros de quarto, o contato com suas famílias e o deles com a sua, as madrugadas solitárias nas salas do terceiro andar se preparando para as recuperações orais, os primeiros namoros, as dores de cotovelo, as conversas íntimas no banheiro e nos bancos do alojamento, os concertos no Municipal, os bailes na Rocinha e na Penha, a vaquejada em Xerém e as paradas obrigatórias no Select ou na Kombi do Chico para matar a fome após as agitadas noites na Cozumel, no Guanabara e nas boates de Copacabana. Fora profundamente marcado por tudo isso, e por todos aqueles finais de semana de serviço ou detido no quartel, pela raiva, dor e alívio ao trancar matrícula e, mais tarde, por ocasião de seu desligamento. Todas essas experiências desconstruíram-no. Jamais seria o mesmo. Vivendo tudo aquilo, ia deixando muita coisa para trás. Perdia a inocência. Anos mais tarde, procuraria algo que o ajudasse a se reconstruir. Na época, não tinha consciência de nada disso, apenas ia vivendo. A semente, entretanto, estava sendo semeada. Aos poucos, germinaria entre a monotonia e disciplina de um quartel e a pluralidade da noite carioca. O escritor nasceria. Escrevendo se reconstruiria. Deve isso à cidade, deve isso ao IME, não nega. Talvez não escrevesse se não tivesse passado por tudo aquilo. A mãe preferia que não tivesse. Agora que é pai a compreende. Se dependesse de sua vontade, ele teria ficado perto de casa indo para o ITA. Desconfiava que o filho não daria certo no Exército. Estava tão certa quanto errada. Não considera que ter ido para o IME foi um erro. Se foi, era um erro que tinha de cometer. Era o que queria. Nostálgico, sensibilizado por todas aquelas lembranças, disse à mulher que voltaria àquele Café no dia seguinte. Planejava escrever numa daquelas mesas. Não imaginaria que seria pego de surpresa. Foi. Desde o início a escrita o pega de surpresa. Chegou ao Rio achando que se tornaria engenheiro militar. Saiu de lá decidido a se tornar escritor. Não estava em seus planos, nunca esteve. Simplesmente aconteceu. Mal havia pedido dois expressos quando sentiu que um texto surgia. Deveria tê-lo rabiscado ali mesmo, mas deixou para depois. Tem a mania de deixar tudo para depois. Agora está batendo cabeça atrás do que horas antes espontaneamente veio até ele e recusou.
Continua...