sábado, 13 de abril de 2019

Do Que Se Trata?

 

Capa do Livro - Obra do artista plástico e amigo Betto Pereira



I celebrate myself, and sing myself,
And what I assume you shall assume,
For every atom belonging to me as good belongs to you.

Walt Whitman

                                                                           
Trata-se de minha inocência minada, de minha inocência pisada, de minha inocência perdida. Trata-se de remontar às origens do mundo e de minha própria história. Trata-se de Caim e Abel, de um combate espiritual. Trata-se de não negar Deus, mas de tornar-se Deus; de não recusar a coroa ao rei, mas de se fazer rei. Trata-se de não rezar mais, de não mais pedir a benção, mas de dar a benção. Trata-se de criar, de se tornar “o divino que sorri e brinca”, de Fernando Pessoa. Trata-se de obstinadamente demonstrar a existência em si de algo que “vale a pena”. Trata-se de arriscar-se a perder a vida na aventura de gerar e viver outras vidas: a destes personagens que carrego no peito. Trata-se de esquecer, de recomeçar, de vir a ser criança novamente. Trata-se de tomar consciência de si mesmo. Trata-se de emocionar-me, de tornar-me humano. Trata-se de ceticismo e devoção. Trata-se de deixar de ser um impassível animal de rebanho, de reconhecer-me no servo que caminhava cabisbaixo ao sol, sob o temor do chicote de seu senhor, e, ainda que ciente do risco de ser fustigado no rosto e cegar, vira-se exibindo ao seu dominador uma boca enfadada de murmurar “Sim, senhor.” e dois olhos faiscantes a protestar: “Isso já foi longe demais, basta!”. Trata-se de ser tomado pelo mesmo furor deste homem em desejar mais que os outros lhe ensinaram que poderia desejar. Trata-se de atingir o que ninguém ousa atingir. Trata-se de sujeitar-se a ser perseguido, achincalhado, a correr o risco de padecer de fome e frio e abreviar seus dias por acreditar em algo maior que a própria vida. Trata-se de acreditar na liberdade do mundo do faz de conta, na potência criadora da mente humana. Trata-se, também, de dinheiro, mas de algo que nem todo dinheiro do mundo seria capaz de comprar. Trata-se de receber sem pedir, de dar aos meus pais e à minha mulher o que lhes é de direito por terem me estendido as mãos quando eu mais necessitei. Trata-se de se reconhecer vítima não meramente do meio, como crê toda gente comum, mas igualmente de si mesmo, de suas próprias idiossincrasias, virtudes, fraquezas, ambições e vícios. Trata-se de examinar a questão do suicídio, da morte, da iniquidade e da benevolência humanas, do bem e do mal. Trata-se de ouvir mais a si próprio que aos outros, uma vez que se refere menos ao senso comum que à intuição. Trata-se de, ao amanhecer, ser tomado pela angústia de escrever, de um parto sem hora marcada. Trata-se de uma necessidade diária de solidão. Não se trata, de modo algum, de não sentir dor, de não se sentir infeliz, mas de mesmo nos momentos mais difíceis não desistir de si mesmo porque compreendeu que não conhecerá o paraíso sem antes cruzar o inferno. Trata-se, então, de na fraqueza reconhecer a própria força, e na aparente insignificância e esterilidade de seus dias discernir o que há de grande e belo em seu amanhã. Também não se trata de se pensar completamente distinto dos demais - pois isto é pensar como eles, é ser como eles - mas de na multidão não me perder, não desacreditar no que apenas meus olhos serão capazes de mirar: o meu caminho. Trata-se, então, de questionar a própria noção de igualdade. Trata-se de um sentimento de raiva, de revolta que me lança ao “tudo ou nada”, contra tudo e contra todos. Trata-se de a um só tempo ir contra mim mesmo na defesa de minha pessoa. Trata-se de uma lacuna em meu ser, do martírio de uma ferida que não se cicatriza, da coexistência em meu peito de demasiada carência e um não menor amor-próprio; da necessidade de ser amado, lembrado, mas de negar-se a pedir, a fazer qualquer concessão por um gesto de carinho ou reconhecimento. Trata-se de justificar não a ociosidade, mas o gênio; não o mal, mas o bem. Trata-se de acusar. Trata-se de antes morrer de pé a viver de joelhos. Trata-se de considerar inadmissivel a existência de uma divindade se não puder participar dessa divindade. Trata-se de ser impossível, de afigurar-se irredimível se contentar com menos do que se deseja e admira. Trata-se de buscar em mim mesmo o meu próprio mundo, o meu próprio deus, o meu próprio inferno e paraíso. Trata-se da busca pela minha individualidade. Trata-se de ser homem sem deixar de ser menino; de ser humano sem deixar de ser divino. Trata-se de ser mais um na multidão ao mesmo tempo em que se dá conta de haver em si uma multidão de homens e mulheres. Trata-se de ser a regra e a exceção. Trata-se de ser contraditório, caprichoso e incoerente por não ser um, mas muitos e, por isso, ser tão incompreendido. Trata-se de mostrar-lhes “Ah! Vejam quanta injustiça suporto por não aceitar viver como vocês!”. Trata-se de um acerto de contas. Trata-se de minha vingança e de minha redenção. Trata-se de tudo o que eu tenho, de tudo o que eu sou. Trata-se de se entediar com a realidade, mas desta não prescindir. Trata-se de minha literatura, de dar vida a um mundo que satisfaça meu desejo de liberdade, comunhão e distinção que existe não apenas em meu coração, mas no coração de cada homem.Trata-se de aceitar o meu tempo. Trata-se de não condenar meu orgulho e revolta, mas de criar minha própria linguagem, revelar minha identidade. Trata-se, enfim, de tornar-me um grande escritor ou nada ser nesse mundo. 

segunda-feira, 1 de abril de 2019

A Neve



Decide preparar uma xícara de café. Enquanto espera a água ferver, dá uma espiada no jardim em frente ao apartamento. Está nevando novamente. Sorri ao relembrar o brilho no olhar do filho quando sobrevoaram a cidade e o acordou para dar uma espiada pela janela. “Tem uma surpresa para você lá fora”. “Pai, aquilo branco nos telhados é neve?”. Há semanas o filho o vinha questionando se veria neve em Paris. Respondia que talvez no final do ano. Não queria criar expectativas. Não considerava provável nevar nos últimos dias de inverno. Ao chegarem ao studio, a mulher parece ansiosa em ligar o aquecedor; o filho, encantado, não se incomoda com os dois graus negativos. Só fala em brincar no jardim. Quanto a ele, pergunta à concierge, que o guia num tour pelas instalações do prédio, se é normal nevar às vesperas da primavera. “Não era para estar nevando. Este inverno está sendo atípico. Em janeiro as temperaturas estavam acima da média. Agora, os jornais noticiam que há trinta anos Paris não vê tanta neve”. Não pergunta mais nada. Embora ainda considere sua própria presença na cidade como algo atípico, começa a sentir como se de outro modo não pudesse ser. Por mais improvável que pudessem supor anos antes, viver em Paris ganha realidade. Está em suas mãos. Ela o guia, desvela-se, aclarando-lhe o caminho. Confiante, sua atitude muda. Espontaneamente entrega-se ao que sente estar se acentuando dentro de si. Não precisa se esforçar ou pensar em coisa alguma. Ele não questiona, não procura razões, apenas deixa-se ser.  Se não sabe ao certo o que responder aos franceses quando lhe perguntam sobre o que o trouxe à cidade, sabe que Paris logo o revelará. A mulher diz que está apaixonado pela cultura francesa. Ele não o nega, não poderia, mas há algo mais. Se ainda não encontrou as palavras precisas para descrever suas sensações ao caminhar pelos boulevares, passages e cafés parisienses, sabe que é questão de tempo. Respirando a catártica atmosfera da cidade logo o encontro entre ele e suas palavras se derá tão naturalmente como agora respira. Em Paris, tudo lhe parece possível. Talvez exagere, mas não é o primeiro tampouco será o último escritor a assim se referir aos libertadores efeitos da cidade no imaginário de espíritos que, atormentados pelo desejo de ir aonde poucos ousam, sonham um dia viver sob seus famosos telhados. Para o escritor sul-africano John Coetzee, Paris é uma das três cidades no mundo em que se pode viver plenamente. "Em Paris todos querem ser atores; ninguém se resigna a ser espectador", escreve Jean Cocteau. Em seu primeiro livro, declara Henry Miller: "Em Paris tudo é elevado à Apoteose". O que sem excessos pode afirmar é que sua sensação de asfixia desapareceu. Sua impressão de estar sufocando ficou para trás. Recupera o fôlego e mergulha mais fundo. Meses depois, os primeiros textos começam a vir à tona. Aos poucos seu livro vai assumindo contornos nítidos. Seu sonho de se tornar escritor não é mais um devaneio. Realidade e fantasia se tornam indistinguíveis em Paris. Respira profundamente aliviado. Acredita ter feito o que tinha de fazer. Não há dúvidas de que esteja no lugar certo. O destino colocou Paris em seu caminho. Seu desejo de mergulhar ao fundo de si mesmo o levou até ela. Sete anos antes ele voltava angustiado da academia, em Petrópolis, quando a ideia sobreveio-lhe no meio da rua. Não teve nem tempo de pensar. Foi subitamente arrebatado, dominado pela ânsia de respirar o ar da cidade. Cinco minutos depois chegava em casa, decidido: “Vamos para Paris”. “Oba! É só marcarmos as férias!". “Não estou falando de uma viagem de férias. Estou falando de viver em Paris”. “Como assim? Com quê dinheiro?”. “Não sei”. “Sei apenas que iremos”. “Tudo bem! Se você descobrir como, eu topo. Só não vou como ilegal”, concluiu  sua mulher em tom de brincadeira, mas falando seriamente. Daquele dia em diante, nas poucas ocasiões ao longo de todos aqueles anos que antecederam a viagem, se vê um sorriso confiante em seu rosto sabe que ele pensa em Paris. Agora, enquanto passeiam com o filho ao longo do Sena ou pelos parques da cidade, frequentemente reconhece aquele mesmo sorriso e lhe pergunta: “Em que está pensando?”. Sua resposta é sempre a mesma: “Não estou pensando em nada. Estou sentindo. Você não sente a magia desse lugar? Não sente as peças do quebra-cabeça do destino se movendo depois que chegamos?”. Ela balança a cabeça, diz que não e após uma breve pausa acrescenta: “Já te falei que essas coisas não acontecem comigo”.

http://br.rfi.fr/franca/20180205-neve-e-frio-chegam-paris-no-fim-do-inverno