quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Redenção




Foi num domingo que tomou uma daquelas decisões que definem um caráter e seu destino. Àquela hora da manhã, não somente em sua casa mas em toda a rua, sua mãe e amigos ainda dormiam quando ergueu-se da cama decidido a tirar a velha bicicleta do pai da garagem. Se quisesse descobrir – e ele queria – o que seu pai sentia nas aventuras que lhe narrara repetidas vezes ao longo de sua infancia, e com um entusiasmo contagiante, teria de seguir em frente. Marcaram profundamente seu coração de menino, aquelas noites, logo apos o jantar, em que se deitavam na rede esticada sob um ceu estrelado e conversavam sobre as excursoes do pai. «Quando eu vou poder ir com você, pai?». «Quando for maior, meu filho!». «Promete?». «Prometo, mas agora é melhor você dormir.». O menino relutava em separar-se do pai e de suas estorias, mas cedia, pedindo-lhe, entretanto, que falasse mais um pouco até que pegasse no sono. Adormecia em seu colo e talvez sonhasse com as aventuras que o pai continuava a narrar:“Há dias em que as nuvens encobrem as montanhas e pedalamos envolvidos por elas. Não nos é possivel ver quase nada a frente. Muitas vezes, a dificuldade é tamanha que desconfiamos estar nos desviando de nosso destino. Receosos de nos perdermos ou nos acidentarmos, frequentemente pensamos em parar, e continuamos. A atmosfera e as emoçoes se tornam tão intensas que nos absorvem completamente. Em vão tentamos compreender.  Se nao encontramos as palavras que possam fixar o que sentimos é porque algo em nós vai se desfazendo, e com ele a propria significação que damos às coisas e a nos mesmos. A experiencia do desconhecido transforma nossa realidade, dissipa-a, pulverizando antigos significados. Angustia. Ja não somos mais quem eramos, e não encontrando sustentação nem mesmo em nossos mais arraigados preconceitos somos arrastados para o vazio que se abre em nossas almas. Não mais nos reconhecemos, e so podemos  gritar. Um grito angustiante, selvagem, inutil. Estamos sozinhos. Ninguém pode nos ajudar. Nesse hiato entre o que éramos e o que seremos, as ficções se alternam. Nenhuma delas prevalece. Se pensamos que agiremos segundo nossas expectativas, no instante seguinte, nos questionamos como podemos ter sido tão ingenuos. Num lapso de tempo, somos muitos e nenhum. O que nos move em meio ao desconhecido é a necessidade de reconhecermo-nos, sermos reconhecidos. Tudo se passa tão inconscientemente quanto pedalamos ou narro minhas aventuras, mas acreditamos agir de maneira consciente. Como pode um homem suportar conscientemente a duvida, a sensação de desequilibrio e a dor do desamparo de estar sob a influencia de forças desconhecidas? A mentira e o sonho são os caminhos para não darmos um fim a nossas vidas: ou nos mantemos na planicie, ou seguimos escalando nossa montanha. Proximo ao cume, descobri-me um desconhecido, solitario, nuvem de fragmentos que ora se distanciam, ora se reagrupam como num caleidoscopio. Ninguem é solido, uno e indivisivel... As imagens mudam segundo o acaso e as circunstancias. Sem a coragem de vivenciar a inconsistencia dos sonhos, não realizamos a travessia. Nossa realidade mais intima não vem à tona, não se torna consciente. Preocupados em não perder, nos perdemos em meias verdades. Não nos realizamos. Permanecemos, inacabados, escondidos atras de ficções  como crianças assustadas. Não crescemos. Se, por outro lado, encaramos o medo de viver e seguimos em frente, pouco a pouco, vamos nos sobrepondo a nos mesmos. Enlouquecemos. Não porque as incertezas deixaram de nos acompanhar, mas porque seguiremos, dali em diante, nossas vidas com a convicção de que outra realidade não nos teria sido possivel.