segunda-feira, 8 de agosto de 2022

 



Free Will

 

He was hesitating. Could he possibly follow the same path he’d followed until then? Yes, from here outside, from where we’d met, we could say yes, but it should equally be said that this didn’t mean no’ wasn’t also the only possibility. In his condition, he wouldn’t go very far. He’d been walking in circles, circles with an ever-shrinking radius, all of them however drawn from the same center, the same impulse. Nevertheless, all directions he’d had a glimpse of from that point seemed to come from what he’d lived until then. Nothing would change. He’d remain the same. Suffice to watch those who’d come before him to erase all trace of doubt. Looking back, he noticed that what was deep and meaningful in himself hadn’t really changed, but transformed. Immutable at the center. He’d never felt things that way until he’d come up to that door. Not that he had pondered them, he’d felt them, and that feeling had revealed a truth. He was now a man in possession of his own truth, the key to his destiny. How had he wandered and waited until it was delivered to him. Not The Truth, of course, Absolute and impersonal. Just his truth, and that was enough for the moment, given he was alone. As he stood in front of that door, he was hesitating. Going through it would be something new. Not like staying out there, where, for better or worse, he could always at least see the people around him. He was alone and scared of what might follow. He could scarcely see, at most his intuition could give him a hunch on what was ahead, and he knew that somehow from that point on it was intuition and not reason, as he was used to, that would guide his steps. He’d lose reason, and that changed everything. It would become something unique, impossible to imitate. Some would say that entering or not was a matter of free will, but he felt as if there wasn’t another thing to do. Key in hand, free will was for him just as real as anyone with him now, and there was nobody there in that moment other than his memories, illusions. This was free will, then: an illusion. With courage coming from the conviction that he couldn’t have acted any differently, he came in and the door closed itself behind him. What served as an entrance for him now couldn’t be of any good to anybody else. It was his, and only for him and to him would it open. Never again would that repeat itself. Nobody would enter, nobody would leave. He himself wouldn’t be able to leave. Isn’t that how it goes with the life of every man? He would continue to be himself, but he was already transformed. He couldn’t go back, and even if he could, nothing would be changed in what he’d been transformed. There was no other choice. There never was one for those outside not living a life but their own. For him, free will had to be left outside.

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Fora de Forma




Amanhecia quando seus companheiros precipitaram-se pela escada. Pouco depois, faria o mesmo. Seria o último a deixar o alojamento, e o deixaria. Ao menos era o que poderíamos esperar, afinal, em todos aqueles anos, pouquíssimas vezes deixou de cumprir o que cria ser seu dever, e quando isso aconteceu tinha sempre consigo uma boa justificativa. Nunca fora punido. Se se demorava ali era porque sentia necessidade de ficar só antes de fardar-se e se atirar naqueles oito lances de escada que unem o alojamento ao pátio interno do quartel, onde se juntaria aos demais cadetes para formatura matinal. A despeito da expectativa que poderíamos, então, acalentar em relação à sua pessoa, restavam pouco menos de cinco minutos, e não demonstrava inquietar-se com as consequências de um provável atraso. O toque do corneteiro advertia, mas portava-se como se não lhe dissesse respeito. Permanecia ensimesmado diante da janela do banheiro a sondar o mar. “É tão vasto que parece conter algo maior que ele próprio”, murmurou, não sem alguma excitação, ao notar em suas águas o reflexo do sol que se erguia no horizonte. Chegava-lhe ainda, embora cada vez mais distante, o ruído surdo e cadenciado da batida dos coturnos de seus colegas no chão duro do pátio interno. “Estão entrando em forma. O chefe de turma provavelmente terminou a contagem e deve estar comunicando minha falta ao tenente”. Sabia que caso se ausentasse, sem uma justificativa convincente, seria severamente punido. Ainda assim, não a tinha. Só a terá décadas mais tarde. Até lá, seu comportamento será entendido como uma estúpida e insensata afronta às normas, como se caprichosamente tivesse se erguido da cama motivado por uma rebeldia efêmera e pueril. Não, não era o que se passava. Era algo mais profundo e, por isso mesmo, difícil de alcançar e debelar. Tudo ia acontecendo tão espontaneamente que não conseguia sofrear. Era como se sua existência fosse deixando de seguir como um toco em enchente para fixar-se num ponto distinto e imprevisto, à margem de tudo o que até então reconhecera como vida. 

A correnteza seguia, mas não o levaria. Dali onde se isolara,  não sem um misto de melancolia e orgulho, assistia à cena em que seus colegas seguiam em frente, enquanto contemplava a corrente à qual sua vida e as deles encontravam-se, até aquela manhã lhe suceder, atreladas. Houve quem ao passar por ele o admoestasse por demorar-se ali, imóvel, prevenindo-o de que seria punido e que o mais sensato seria entrar em forma imediatamente. Não lhes deu atenção. Não poderia. Não com aquele horizonte emergindo diante de si, sobre si, em si. Sentia-se envolvido, dominado por algo maior que ele próprio. Em seu silêncio pressentia algo singularmente intenso a desvelar-se em seu destino. Aconteceu-lhe, ao contemplar o mar, o que mais tarde denominaria “sentir-se ser” e “sentir-se ser” representava, para ele, uma perturbadora e irresistível maneira de ver a si mesmo tomando parte no mundo e, ao mesmo tempo, ausente dele; uma forma de desviar-se, de perder-se para vivenciar as angústias e as alegrias imanentes a um tortuoso processo de redescobrir-se. Tudo ressurgia sob uma perspectiva nova. Minutos antes, parecia-lhe natural pensar que, naquele instante, era ele, e não seus colegas, quem estava a fazer nada, apático. Agora, ao acontecer-lhe de “sentir-se ser”, interpretava as coisas como que pelo avesso: “são eles, e não eu, que permanecem passivos”. Não fazer nada passou a significar, dali em diante, fardar-se, diplomar-se e seguir numa direção e cadência que não lhe seriam ditadas pela sua própria natureza.