sexta-feira, 23 de março de 2018

Desconstrução

Decide preparar uma xícara de café. Enquanto espera a água ferver, dá uma espiada no jardim em frente ao seu apartamento. Está nevando novamente. Lembrou-se da senhora que mora ao lado dizer que este mês de março está sendo atípico em Paris. Não era para estar nevando. Não a questiona. Para ele, tudo parece atípico neste momento de sua vida. Sente que há algo acontecendo consigo em Paris. Não sabe dizer o que é, mas deseja que continue. São 4:14. A mulher e o filho estão dormindo. Daqui a pouco acordarão. Há horas está sentado próximo ao aquecedor. Não consegue dormir. Seus olhos vão de um lado a outro relendo os capítulos anteriores. Está satisfeito com o que escreveu ontem embora não ignore que dali a instantes deixará de estar. É sempre a mesma coisa. Por hora, no entanto, ainda acha que está bom. Conseguiu encontrar o ritmo. No texto que começou a escrever não o encontrou. Sabe que está perdido. Relia os anteriores na esperança de reaver o fio da meada. Em vão. Melhor preparar o café e colocar uma música, pensa. Faz parte de seu ritual. Acredita que a música e o café o ajudam a encontrar o ritmo de um texto, e com ele, as palavras. Foi assim à tarde, quando estava num Café próximo ao seu apartamento. Ao entrar, percebeu que tocava Cake. Há anos não ouvia a banda, acha que desde que saiu do IME. Uma torrente de lembranças sobreveio-lhe. Jamais esqueceu as rodas de samba na Praia Vermelha, as viagens pelo país com os companheiros de quarto, o contato com suas famílias e o deles com a sua, as madrugadas solitárias nas salas do terceiro andar se preparando para as recuperações orais, os primeiros namoros, as dores de cotovelo, as conversas íntimas no banheiro e nos bancos do alojamento, os concertos no Municipal, os bailes na Rocinha e na Penha, a vaquejada em Xerém e as paradas obrigatórias no Select ou na Kombi do Chico para matar a fome após as agitadas noites na Cozumel, no Guanabara e nas boates de Copacabana. Fora profundamente marcado por tudo isso, e por todos aqueles finais de semana de serviço ou detido no quartel, pela raiva, dor e alívio ao trancar matrícula e, mais tarde, por ocasião de seu desligamento. Todas essas experiências desconstruíram-no. Jamais seria o mesmo. Vivendo tudo aquilo, ia deixando muita coisa para trás. Perdia a inocência. Anos mais tarde, procuraria algo que o ajudasse a se reconstruir. Na época, não tinha consciência de nada disso, apenas ia vivendo. A semente, entretanto, estava sendo semeada. Aos poucos, germinaria entre a monotonia e disciplina de um quartel e a pluralidade da noite carioca. O escritor nasceria. Escrevendo se reconstruiria. Deve isso à cidade, deve isso ao IME, não nega. Talvez não escrevesse se não tivesse passado por tudo aquilo. A mãe preferia que não tivesse. Agora que é pai a compreende. Se dependesse de sua vontade, ele teria ficado perto de casa indo para o ITA. Desconfiava que o filho não daria certo no Exército. Estava tão certa quanto errada. Não considera que ter ido para o IME foi um erro. Se foi, era um erro que tinha de cometer. Era o que queria. Nostálgico, sensibilizado por todas aquelas lembranças, disse à mulher que voltaria àquele Café no dia seguinte. Planejava escrever numa daquelas mesas. Não imaginaria que seria pego de surpresa. Foi. Desde o início a escrita o pega de surpresa. Chegou ao Rio achando que se tornaria engenheiro militar. Saiu de lá decidido a se tornar escritor. Não estava em seus planos, nunca esteve. Simplesmente aconteceu. Mal havia pedido dois expressos quando sentiu que um texto surgia. Deveria tê-lo rabiscado ali mesmo, mas deixou para depois. Tem a mania de deixar tudo para depois. Agora está batendo cabeça atrás do que horas antes espontaneamente veio até ele e recusou.
Continua...

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