segunda-feira, 1 de abril de 2019

A Neve



Decide preparar uma xícara de café. Enquanto espera a água ferver, dá uma espiada no jardim em frente ao apartamento. Está nevando novamente. Sorri ao relembrar o brilho no olhar do filho quando sobrevoaram a cidade e o acordou para dar uma espiada pela janela. “Tem uma surpresa para você lá fora”. “Pai, aquilo branco nos telhados é neve?”. Há semanas o filho o vinha questionando se veria neve em Paris. Respondia que talvez no final do ano. Não queria criar expectativas. Não considerava provável nevar nos últimos dias de inverno. Ao chegarem ao studio, a mulher parece ansiosa em ligar o aquecedor; o filho, encantado, não se incomoda com os dois graus negativos. Só fala em brincar no jardim. Quanto a ele, pergunta à concierge, que o guia num tour pelas instalações do prédio, se é normal nevar às vesperas da primavera. “Não era para estar nevando. Este inverno está sendo atípico. Em janeiro as temperaturas estavam acima da média. Agora, os jornais noticiam que há trinta anos Paris não vê tanta neve”. Não pergunta mais nada. Embora ainda considere sua própria presença na cidade como algo atípico, começa a sentir como se de outro modo não pudesse ser. Por mais improvável que pudessem supor anos antes, viver em Paris ganha realidade. Está em suas mãos. Ela o guia, desvela-se, aclarando-lhe o caminho. Confiante, sua atitude muda. Espontaneamente entrega-se ao que sente estar se acentuando dentro de si. Não precisa se esforçar ou pensar em coisa alguma. Ele não questiona, não procura razões, apenas deixa-se ser.  Se não sabe ao certo o que responder aos franceses quando lhe perguntam sobre o que o trouxe à cidade, sabe que Paris logo o revelará. A mulher diz que está apaixonado pela cultura francesa. Ele não o nega, não poderia, mas há algo mais. Se ainda não encontrou as palavras precisas para descrever suas sensações ao caminhar pelos boulevares, passages e cafés parisienses, sabe que é questão de tempo. Respirando a catártica atmosfera da cidade logo o encontro entre ele e suas palavras se derá tão naturalmente como agora respira. Em Paris, tudo lhe parece possível. Talvez exagere, mas não é o primeiro tampouco será o último escritor a assim se referir aos libertadores efeitos da cidade no imaginário de espíritos que, atormentados pelo desejo de ir aonde poucos ousam, sonham um dia viver sob seus famosos telhados. Para o escritor sul-africano John Coetzee, Paris é uma das três cidades no mundo em que se pode viver plenamente. "Em Paris todos querem ser atores; ninguém se resigna a ser espectador", escreve Jean Cocteau. Em seu primeiro livro, declara Henry Miller: "Em Paris tudo é elevado à Apoteose". O que sem excessos pode afirmar é que sua sensação de asfixia desapareceu. Sua impressão de estar sufocando ficou para trás. Recupera o fôlego e mergulha mais fundo. Meses depois, os primeiros textos começam a vir à tona. Aos poucos seu livro vai assumindo contornos nítidos. Seu sonho de se tornar escritor não é mais um devaneio. Realidade e fantasia se tornam indistinguíveis em Paris. Respira profundamente aliviado. Acredita ter feito o que tinha de fazer. Não há dúvidas de que esteja no lugar certo. O destino colocou Paris em seu caminho. Seu desejo de mergulhar ao fundo de si mesmo o levou até ela. Sete anos antes ele voltava angustiado da academia, em Petrópolis, quando a ideia sobreveio-lhe no meio da rua. Não teve nem tempo de pensar. Foi subitamente arrebatado, dominado pela ânsia de respirar o ar da cidade. Cinco minutos depois chegava em casa, decidido: “Vamos para Paris”. “Oba! É só marcarmos as férias!". “Não estou falando de uma viagem de férias. Estou falando de viver em Paris”. “Como assim? Com quê dinheiro?”. “Não sei”. “Sei apenas que iremos”. “Tudo bem! Se você descobrir como, eu topo. Só não vou como ilegal”, concluiu  sua mulher em tom de brincadeira, mas falando seriamente. Daquele dia em diante, nas poucas ocasiões ao longo de todos aqueles anos que antecederam a viagem, se vê um sorriso confiante em seu rosto sabe que ele pensa em Paris. Agora, enquanto passeiam com o filho ao longo do Sena ou pelos parques da cidade, frequentemente reconhece aquele mesmo sorriso e lhe pergunta: “Em que está pensando?”. Sua resposta é sempre a mesma: “Não estou pensando em nada. Estou sentindo. Você não sente a magia desse lugar? Não sente as peças do quebra-cabeça do destino se movendo depois que chegamos?”. Ela balança a cabeça, diz que não e após uma breve pausa acrescenta: “Já te falei que essas coisas não acontecem comigo”.

http://br.rfi.fr/franca/20180205-neve-e-frio-chegam-paris-no-fim-do-inverno

Um comentário:

  1. O que acontece comigo é dar a sorte de embarcar nesses navios com voce!
    ;-)
    Excelente texto!

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