quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Fora de Forma




Amanhecia quando seus companheiros precipitaram-se pela escada. Pouco depois, faria o mesmo. Seria o último a deixar o alojamento, e o deixaria. Ao menos era o que poderíamos esperar, afinal, em todos aqueles anos, pouquíssimas vezes deixou de cumprir o que cria ser seu dever, e quando isso aconteceu tinha sempre consigo uma boa justificativa. Nunca fora punido. Se se demorava ali era porque sentia necessidade de ficar só antes de fardar-se e se atirar naqueles oito lances de escada que unem o alojamento ao pátio interno do quartel, onde se juntaria aos demais cadetes para formatura matinal. A despeito da expectativa que poderíamos, então, acalentar em relação à sua pessoa, restavam pouco menos de cinco minutos, e não demonstrava inquietar-se com as consequências de um provável atraso. O toque do corneteiro advertia, mas portava-se como se não lhe dissesse respeito. Permanecia ensimesmado diante da janela do banheiro a sondar o mar. “É tão vasto que parece conter algo maior que ele próprio”, murmurou, não sem alguma excitação, ao notar em suas águas o reflexo do sol que se erguia no horizonte. Chegava-lhe ainda, embora cada vez mais distante, o ruído surdo e cadenciado da batida dos coturnos de seus colegas no chão duro do pátio interno. “Estão entrando em forma. O chefe de turma provavelmente terminou a contagem e deve estar comunicando minha falta ao tenente”. Sabia que caso se ausentasse, sem uma justificativa convincente, seria severamente punido. Ainda assim, não a tinha. Só a terá décadas mais tarde. Até lá, seu comportamento será entendido como uma estúpida e insensata afronta às normas, como se caprichosamente tivesse se erguido da cama motivado por uma rebeldia efêmera e pueril. Não, não era o que se passava. Era algo mais profundo e, por isso mesmo, difícil de alcançar e debelar. Tudo ia acontecendo tão espontaneamente que não conseguia sofrear. Era como se sua existência fosse deixando de seguir como um toco em enchente para fixar-se num ponto distinto e imprevisto, à margem de tudo o que até então reconhecera como vida. 

A correnteza seguia, mas não o levaria. Dali onde se isolara,  não sem um misto de melancolia e orgulho, assistia à cena em que seus colegas seguiam em frente, enquanto contemplava a corrente à qual sua vida e as deles encontravam-se, até aquela manhã lhe suceder, atreladas. Houve quem ao passar por ele o admoestasse por demorar-se ali, imóvel, prevenindo-o de que seria punido e que o mais sensato seria entrar em forma imediatamente. Não lhes deu atenção. Não poderia. Não com aquele horizonte emergindo diante de si, sobre si, em si. Sentia-se envolvido, dominado por algo maior que ele próprio. Em seu silêncio pressentia algo singularmente intenso a desvelar-se em seu destino. Aconteceu-lhe, ao contemplar o mar, o que mais tarde denominaria “sentir-se ser” e “sentir-se ser” representava, para ele, uma perturbadora e irresistível maneira de ver a si mesmo tomando parte no mundo e, ao mesmo tempo, ausente dele; uma forma de desviar-se, de perder-se para vivenciar as angústias e as alegrias imanentes a um tortuoso processo de redescobrir-se. Tudo ressurgia sob uma perspectiva nova. Minutos antes, parecia-lhe natural pensar que, naquele instante, era ele, e não seus colegas, quem estava a fazer nada, apático. Agora, ao acontecer-lhe de “sentir-se ser”, interpretava as coisas como que pelo avesso: “são eles, e não eu, que permanecem passivos”. Não fazer nada passou a significar, dali em diante, fardar-se, diplomar-se e seguir numa direção e cadência que não lhe seriam ditadas pela sua própria natureza.

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