quarta-feira, 31 de maio de 2017

O Aprendizado




Há quase seis anos Theo nasceu. Antes de seu nascimento já era da opinião que seria mais importante cuidar dele em seus primeiros anos de vida do que me dedicar a qualquer outra atividade, mesmo as que me são caras, como a escrita e a musculação. A despeito do que me aconselhavam, jamais pensei diferente. Nunca considerei a possibilidade de deixá-lo numa creche, ou sob os cuidados de uma babá. Ainda assim, somente quando o peguei no colo pela primeira vez realmente senti que não tomaria outra decisão que não fosse permanecer nos anos seguintes, ali, ao seu lado. Não apenas por ter me sentido responsavel por alguém tão pequeno e indefeso, mas também porque sempre alimentei o desejo de ter uma ligação íntima e profunda com meu filho. O preço desse tipo de relacionamento, e eu não me enganava, seria menos tempo e energia para me dedicar à escrita e à musculação. Assim, em seus primeiros meses, a propria leitura quase deixou de fazer parte de minha rotina. A disposição que me restava apos um dia corrido empregava na academia enquanto Theo, à noite, ficava com a mãe, o que me propiciava um alivio das tensões inerentes àquele periodo de adaptação - não apenas nos primeiros meses, mas anos em que minha vida havia virado de cabeça para baixo. Eu estava me tornando pai. Não se torna pai quando o filho nasce. Tornar-se pai sempre pareceu-me um processo diario, uma construção constante, como escrever ou hipertrofia fisica. Exige dedicação e amor pelo processo de aprendizado e construção porque não é facil, nem um pouco, como tudo o que exige que abdiquemos de velhos habitos e rotinas na busca de um objetivo maior.

Com o fim da licença maternidade da Namorada, meus dias passaram a transcorrer em meio aos banhos, às papinhas, às incontaveis trocas de fraldas até o ensinarmos a fazer xixi e cocô no pinico, às recorrentes preocupações em saber se estava bem agasalhado, ou se alimentando corretamente e bebendo água o suficiente. Quando sobrava algum tempo ou dormia, ou tomava banho, ou me alimentava. No seu primeiro ano de vida, se mal conseguia  ler, o que dirá escrever. Ia dormir exausto e acordava cansado, mas o que me importava era estar perto não apenas para dar-lhe carinho e atenção, mas também para dizer não sempre que fosse necessário - e como foi. Queria, sobretudo, estimular suas aptidões, dando as condições e o incentivo para que as desenvolvesse. Desejava vê-lo se sentindo cada vez mais confiante até que não precisasse mais das mãos dos pais para dar seus primeiros passos ou equilibrar-se em sua bicicleta. 

Nesta semana que marca o encerramento de seus três primeiros anos escolares, torno a sentir o quanto é gratificante a um pai acompanhar seu filho conquistando confiança em si mesmo. Ao tomar a decisão de abrir-me ao aprendizado da paternidade, não ignorava, como disse, que sentiria falta de tempo para escrever e me ressentiria da perda desses momentos solitarios sem os quais me sinto perdido. Sem escrever, temia estar me desviando de mim mesmo. Não podia imaginar o quanto estava enganado. É tudo muito intenso e difícil, como tão bem descreveu, mais abaixo, a escritora Natalia Ginzburg sobre conciliar a criação de seus filhos e o seu ofício de escrever, que não podemos ver a que descobertas essa experiencia nos encaminha. Ontem, dia em que Theo fez sua apresentação de final de ano no judô, ao ver sua garra e confiança nas lutas (link acima), lembrei-me da insegurança que sentiu ao começar numa turma de judocas mais experientes, de sua força quando começou a frequentar uma escola publica francesa, assustado, por se ver cercado de pessoas que não o compreendiam, e nem ele a elas, além de tantas outras ocasiões em que estive proximo para encoraja-lo a seguir em frente. E ele seguiu. Na noite de ontem, quando me abraçou, senti que ter sido presente e vivido intensamente a experiencia de tornar-me pai, algo indiscutivelmente tão estressante como enriquecedor, não me afastou da escrita ou da academia, como muitas vezes, desesperado, temi. Ser pai não me privou de quem sou; antes, revelou-me um pouco mais de mim mesmo. Ter tido pouco tempo para outras atividades para acompanha-lo levou-me a não perder tempo com o que não me fosse realmente essencial como organizar meu livro ou me preparar para uma competição de fisiculturismo.



"E depois nasceram meus filhos e, de início, quando eles eram pequenos, eu não conseguia entender como era possível escrever tendo filhos. Não entendia como seria possível me separar deles para seguir um fulano num conto. Comecei a desprezar meu ofício. Às vezes sentia uma desesperada saudade dele, me sentia em exílio, mas me esforçava em desprezá-lo e denegri-lo para cuidar dos meninos. Achava que devia agir assim. Passei a preocupar-me com a papa de arroz e a papa de cevada, se havia sol ou se não havia sol, se ventava ou não quando ia levar os meninos para passear. As crianças me pareciam algo muito importante para que eu me desviasse atrás de estúpidas histórias e de estúpidas personagens embalsamadas. Mas sentia uma feroz nostalgia e às vezes, à noite, quase chorava ao lembrar como meu ofício era belo. Pensava que algum dia mais cedo ou mais tarde o recuperaria, mas não sabia quando: achava que deveria esperar que meus filhos se tornassem adultos e fossem embora de mim. Porque o que eu sentia por meus filhos naquela época era uma coisa que eu não havia aprendido a dominar. Mas depois, pouco a pouco, aprendi. Nem precisei de muito tempo. Ainda preparava o molho de tomate e a semolina, mas ao mesmo tempo pensava em coisas para escrever. (...) Escrevi um conto longo, o mais longo que já tinha escrito. Recomeçava a escrever como alguém que nunca havia escrito, porque fazia muito tempo que não escrevia, e as palavras estavam como que lavadas e frescas, tudo estava de novo como que intacto e cheio de sabor e de cheiros. Escrevia à tarde, quando meus meninos iam passear com uma garota do povoado, escrevia com avidez e alegria, e era um outono belíssimo e todo dia eu me sentia muito feliz. 

(...) Assim é o meu ofício. Dinheiro, vejam, ele não rende muito; aliás, sempre é preciso fazer simultaneamente algum outro trabalho para viver. Contudo, às vezes ele rende pouco, e ter dinheiro por sua própria virtude é uma coisa boa, como receber dinheiro e presentes das mãos do ser amado. Assim é o meu ofício. Não sei muito - torno a dizer - sobre o valor dos resultados que me deu e que ainda poderá me dar: ou melhor, dos resultados já obtidos conheço o valor relativo, certamente não o absoluto. Quando escrevo algo, frequentemente penso que aquilo é muito importante e que sou uma grande escritora. Acho que acontece com todos. Mas há um cantinho de minha alma onde sempre sei muito bem o que sou, isto é, uma pequena, pequena escritora. Juro que sei. Mas não me importa muito. Simplesmente não quero pensar em nomes; percebi que, se me perguntarem " um pequeno escritor como quem?", fico triste ao pensar nos nomes de outros pequenos escritores. Prefiro acreditar que ninguém nunca foi como eu, por menor que tenha sido,  por mais que seja um mosquito ou uma pulga de escritora. O que é importante é ter a convicção de que se trata de um autêntico ofício, uma profissão, uma coisa que será feita por toda a vida. E, sendo um ofício, não é uma brincadeira. Há inúmeros perigos além dos que já citei. Somos continuamente ameaçados por graves perigos já no ato de preencher nossa página. Há o perigo de começarmos a tentar seduzir e cantar de repente. E há o perigo de ludibriar com palavras que de fato não existem em nós, que pescamos por acaso fora de nós e que enfileiramos com destreza porque nos tornamos espertos. Há o perigo de bancar o esperto e enganar. Como veem, trata-se de um ofício bastante complicado: mas é o melhor que há no mundo. Os dias e os casos de nossas vidas, os dias e os casos dos outros que assistimos, leituras e imagens e pensamentos e discursos, tudo isso o sacia e cresce dentro de nós. É um ofício que se nutre de coisas horríveis, devora o melhor e o pior de nossas vidas, tanto nossos sentimentos ruins quanto os sentimentos bons correm em seu sangue. Nutre-se e cresce em nós."

Trecho extraído de As Pequenas Virtudes, de Natalia Ginzburg

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