domingo, 10 de março de 2019

O Fascínio pelas Montanhas - O IME e a Musculação




...Em sua primeira visita à Cidade Maravilhosa, os encantos se sucedem, definem seus passos futuros. Na sala de aula em que se encontra, após distribuir os cartões de respostas aos vestibulandos, ouve um trecho da conversa entre o pai e um dos professores do ITA. “O IME não é muito conhecido pelo grande público, mas é para onde vão as melhores cabeças.”. Aquele comentário sela seu futuro. Se já havia sido seduzido pelo Rio, agora o era pelo IME. Aos treze anos não faz a menor ideia sobre qual seria sua vocação, mas não ignora seu desejo de figurar entre os melhores. Que para se tornar engenheiro militar seja necessária a vocação para a engenharia e para a vida militar, é algo que não leva em consideração. Ao chegar em casa, anuncia, decidido: “Um dia serei aluno do IME”. Os pais não o devem ter levado a sério, mas cinco anos depois os lembraria de sua decisão. Ao concluir o segundo grau, não vê razões para estagiar por mais seis meses apenas para ter um diploma de técnico em eletrônica. “Não quero ser técnico. Vou para o IME”. Não sabe se seus pais compartilham de sua confiança, mas não tem dúvidas de que gostam da ideia de um filho oficial. “Terá estabilidade!”. Preferem que antes ele se diplome, mas mais uma vez lhe dão liberdade para fazer do seu jeito. Desejam ver aonde tudo aquilo vai dar. O IME é sua meta. Não possui plano B. A ideia de cursar uma universidade particular é duplamente absurda: não tem dinheiro e mesmo as públicas lhe parecem superiores. Isso, no entanto, não significa que passe pela sua cabeça ingressar numa universidade pública qualquer. Sua ambição de estar entre os melhores o impede de seguir nessa direção. Aos seus olhos, apenas o ITA pode ser colocado no mesmo nivel do IME, mas sente que seu lugar não é mais em São José dos Campos. Não tem mais o que fazer lá. A vida o espera no Rio. Se presta o ITA, é por conveniência. Não quer esticar a corda com seus pais. “Mas você está com dezenove anos e só tem mais duas tentativas para passar num vestibular difícil como o do IME. Melhor pensar em outra possibilidade. Pelo menos preste o ITA”. Por duas vezes é reprovado, mas segue confiante. Sabe que se trata de uma questão de tempo. Simplesmente não chegou sua hora. Tem de esperar. Sempre tem de esperar. Quando se compara aos outros percebe que seu tempo não é o mesmo. Parece estar sempre atrás. Não sabe se percorre um caminho mais longo ou íngreme ou se os outros tomam atalhos que desconhece. Uma coisa lhe parece certa: se esses atalhos existem, não são para alguém como ele. Para alcançar os dificeis locais com os quais sonha terá de ser paciente, persistente.

Ao final daquele ano, pela terceira vez amarga uma reprovação. Os poucos que o incentivavam se mostram mais cautelosos. Sua mãe lhe diz que não conseguirá. Uma das poucas exceções continua sendo Nicolau, um dos fundadores do Poliedro. Um dia o reencontra no Parque Santos Dumont, enquanto se exercita. Ele o questiona sobre seus planos. Responde que estudará sozinho. Nicolau o observa por um momento e comenta: “Você chegava atrasado e parecia distraído nas aulas. Suas notas nos simulados, no entanto, o colocavam entre os primeiros. Tem potencial para passar, mas por que não se esforçou?” A pergunta não o aborrece. Chega mesmo a despertar sua gratidão e simpatia. É um antigo aluno do ITA reconhecendo seu potencial num momento em que se sentia alvo de descrença. Sua resposta é de que dessa vez conseguirá. “Na última bateu na trave”, acrescenta em tom bem-humorado antes de se despedirem.

Em outubro atingirá a idade limite permitida aos pretendentes a uma vaga no IME. Para sua quarta  tentativa, o pai pergunta se deseja se matricular no Poliedro. Continua deixando o filho escolher. Sua resposta é de que não precisa de cursinhos. Ao invés de fazer o que seria esperado para alguém em semelhante situação, se recusa a pensar em outras universidades. Coloca todas suas fichas numa única aposta. Nem mesmo o ITA quer mais prestar. “Você está louco. E se for reprovado novamente, o que vai fazer da vida?”. Não vê as coisas da mesma forma. Nunca vê quando se trata de si mesmo. Sabe que nada deseja que não seja ir para o IME. Qualquer outra possibilidade, aos seus olhos, significa desviar-se de seu caminho. “É loucura!”, não se cansam de repetir, mas há uma razão para agir assim. Talvez inconscientemente esteja evitando se sabotar ao considerar outra possibilidade. Um plano B o relaxaria e sente não ser a hora de relaxar. Nas preparações para as corridas de curta distância, aprendeu que a tensão e o medo exacerbam sua vontade e dedicação. Não duvidar do que lhe diz sua intuição é a estratégia adotada para vencer a mais importante prova de sua vida. Se antes hesitava em comunicar aos pais que não quer saber de prestar outro vestibular, agora estica a corda ao limite. A tensão é máxima. “Vamos ver se não vou conseguir.” Sua decisão é temerária. Novamente entre os extremos. Ou será aluno do IME, ou nada será. Não vê outra possibilidade à sua frente que não seja a aprovação. Seus olhos chispam de raiva quando alguém lhe diz que deveria colocar os pés no chão e fazer como alguns de seus amigos. “Não vou prestar qualquer universidade. Eu sei o que quero!” Sente que estão todos contra ele. Descobre o que um dia Villa-Lobos teria expressado da seguinte maneira: “Quem vem de baixo como eu tem que varar com fé pois vai contra a gravidade”. Pela primeira vez manifesta o desejo de algo maior que aquilo que as pessoas à sua volta lhe diziam ser possivel a alguém como ele. Pela primeira vez se recusa a se acomodar ao lugar que o mundo lhe indica ser o seu. Sente pesar sobre sua vontade essa gravidade a qual teria se referido Villa-Lobos. Não pode querer o que quer. Chamam-no de pretensioso. Se recusa a ser humilde se isso significa apequenar sua vida. Começa a se aborrecer com o ambiente ao redor. Não quer conviver com pessoas acomodadas. Espera encontrar no IME outros como ele. Sabe que lá conhecerá pessoas inteligentes, mas não é isso que procura. Não falta inteligência aos seus amigos em São José dos Campos. O que lhes falta é ambição, originalidade e ousadia. Quer estar entre pessoas desejosas de testar seus limites. Mais do que nunca sente necessidade de ir para o Rio. Sente necessidade de um lugar em que possa explorar todo seu potencial. Naquele momento, vê no Rio esse lugar. Se estiver se superestimando, a vida lhe dirá. Se estiver errado, logo descobrirá. O que não fará é deixar de tentar. Acredita que um homem de verdade não deixaria. Aos poucos começa a se distanciar das pessoas. Não tem interesse em ouvir o que elas lhe dizem sobre como viver sua vida. Seu interesse é se tornar capaz de ouvir o que a própria vida tem a lhe dizer. Como que por instinto, ao não dar ouvido aos outros, afasta o maior dos perigos: envenenar-se começando a duvidar de si mesmo. Não deixará que o privem do essencial. Não será como eles. Promete a si mesmo que ganhando ou perdendo, não fará como eles. “Seus amigos estão empregados ou se formando e nos últimos quatro anos você não saiu do lugar. Está ficando para trás porque além de pretensioso é teimoso”. “Eu vou conseguir. Vou mostrar que vocês estão errados a meu respeito.” Se acredita no que diz, age como se propositadamente tivesse deixado para última hora. Parece sempre deixar tudo para a última hora. 

Um dia ouve um comentário de um vizinho e descobre que se não o criticam abertamente, questionam seus pais pela liberdade que dão ao filho. “Estão criando um vagabundo metido a besta. Se fosse meu filho, teria ido na marra para a AMAM.” Dois anos antes ele havia sido aprovado no exame de admissão da Escola Preparatória de Cadetes do Exército, antessala da AMAM. O pai se orgulhou. "Você será oficial do Exército!", era o que lia em seu semblante. Qual não deve ter sido sua frustração ao ouvir o filho dizer que não seria aluno da AMAM. “ O que eu quero é o IME”. Pela primeira vez depois de ter abandonado o colégio técnico temeu a reação de seu pai. Temeu ter levado a situação ao limite, mas sentia que não poderia ceder. O pai pareceu contrariado mas novamente deu-lhe um voto de confiança e liberdade para decidir sobre seu destino.

Naquele mesmo ano, surgiram na família as comparações entre ele e um tio que desdenhara o que mais tarde seria visto como a grande oportunidade de sua vida: um convite para cursar a mesma AMAM. “Não quero ter cabresto!”, foi a resposta do tio cuja vida viria a ser devastada pelo alcoolismo. Gostou dessa estória de não aceitar cabresto. Logo se identificou com seu tio. Entretanto, na mesma medida em que se orgulhava com a identificação, inquietava-o os riscos de semelhante temperamento, marcado por essa orgulhosa defesa da própria liberdade tantas vezes expressa em fugas ao longo da vida. Temendo as armadilhas a que poderia estar predisposto, ele que já demonstrava interesse por uma rotina mais saudável, encontra no destino de seu tio uma razão a mais para segui-la. Não quer saber de bebidas alcoólicas. Sua decisão contribui para distanciá-lo dos amigos que se iniciavam no mundo do álcool, do cigarro e das baladas. Sem desentendimentos, seu círculo de relacionamentos vai se estreitando, e ele passa cada vez mais tempo consigo mesmo. A mãe demonstra alguma preocupação. Teme que o filho esteja deprimido. Ele não se ressente de sua solidão. Não a lastima. Aceita-a como algo natural, ela que se revelaria dali em diante imprescindível. Solitário, começaria a entrever as particularidades do contexto em que fora criado e suas próprias idiossincrasias. Negá-la significaria negar a singularidade de seu destino. Não a aceitasse, não se tornaria quem haveria de se tornar. Jamais encontraria seu autêntico caminho. Jamais se entregaria a um ofício cujo perigo e fascínio muito deve à solidão e à ansia de liberdade, elementos que por volta dos dezesseis anos começavam a se revelar indissociáveis em sua vida.    

Antes de iniciar a preparação para sua quarta e última tentativa, por uma semana, refugia-se na casa da avó, em Piquete. Sente ter chegado o momento de se concentrar. Quer ficar absolutamente afastado de tudo e de todos. Naqueles ensolarados dias de janeiro, faz longas e solitárias caminhadas aos pés da serra da Mantiqueira. Não perde o Pico dos Marins de vista. É a mais alta montanha que seus olhos já tiveram diante de si. É como o IME. É o seu Everest. Sonha conquistá-la um dia. Sonha ver a vida das grandes alturas. 

Em Piquete percebe que caminhar ao ar livre lhe faz bem e, ao retornar à São José, sua rotina se define. Seus dias se dividem entre exercícios fisicos e desafios de matemática, física e química. Duas vezes por semana, acorda mais cedo para correr. Sem condições de pagar uma academia, improvisa seus halteres com latas de tinta, barras de ferro e cimento. De segunda a sexta, pelas manhãs, encontra o Tonhão na biblioteca do ITA. Se conheceram na Escola Técnica, mas somente naquele ano se tornam grandes amigos. O Tonhão se diplomou em eletrônica e por um tempo trabalhou na Philips antes de decidir cursar engenharia mecânica. Diz ter deixado a Philips porque queria “algo maior”. É o que há de comum entre eles naquele momento. Dividindo uma mesa, cada um se ocupa de sua lista de exercícios. Nas pausas entre um exercicio e outro, conversam sobre suas vidas. Ao meio-dia se despedem. Ao chegar em casa, almoça, cochila um pouco e ao final da tarde pedala até o Parque Santos Dumont para fazer barras, paralelas e abdominais. O que chama a atenção dos familiares e amigos é que parece não estudar, pelo menos não o esperado para alguém que pretende se tornar aluno do IME. Aparenta estar mais interessado em suas refeições, horas de sono e atividade física. Não se lembra de outro momento em que tenha dormido e se alimentado como naquele ano. Talvez na primeira infância. Tem um expressivo ganho de massa muscular. A mãe não gosta das mudanças no corpo do filho. “ Está ficando feio”. O pai conta-lhe que praticava halterofilismo quando tinha sua idade. Foi ele quem o iniciara nos esportes e numa alimentação mais equilibrada. Sua experiência pessoal ignora o dualismo corpo e espirito. A tensão emocional daquele ano vai se convertendo em disposição e músculos. Não é apenas o corpo que está mudando. Sua mentalidade começa a se modificar. As mudanças corporais são reflexo de seu esforço e disciplina. São reflexo de uma mudança interna. Ao aprofundar essas mudanças, começa a se diferenciar. Está se sentindo cada vez mais forte e credita isso ao conhecimento adquirido em nutrição esportiva. Lê tudo o que lhe cai nas mãos sobre vitaminas, minerais, ácidos graxos, neurotransmissores e aminoácidos. Sem dinheiro, pede aos pais lecitina de soja, óleo de figado de bacalhau e levedo de cerveja. Somados ao germe de trigo e à proteina de soja texturizada se tornam seus complementos alimentares. Atuam no desenvolvimento cerebral e muscular. Persegue o melhor de si mesmo. Quer aprender como funciona seu corpo. “Deveria estar estudando ao invés de tomar bomba.”. “O que esse vagabundo quer da vida? Só pensa em malhar”. “Deveria dar mais atenção à inteligência que ao físico”. Começa a dar de ombros ao ouvir esse tipo de discurso, lugar-comum dos sedentários pretensamente inteligentes. Inteligente é cuidar de si mesmo. É o que faz ao longo daquele ano. Sabe que passando no IME calará a boca dessas pessoas. Quem contestará sua inteligência? Ele está se esforçando de um jeito pouco convencional para um vestibulando porque ser aluno do IME não é seu autêntico objetivo. O que ele realmente busca é expandir seus limites de forma consistente, sem recorrer a atalhos. Desconfia de atalhos. Não acredita em pílulas mágicas. Acredita em intuição e vontade. Busca um crescimento equilibrado, e para ele tal crescimento não deve se limitar a hipertrofia muscular ou intelectual. Trabalhando as partes, não perde de vista o todo. Quer força e equilíbrio. Disciplinado, não se desvia de sua rotina. Não lhe importa o que digam. É muito cedo para se acomodar. É o que sente aos vinte, é o que sentirá aos quarenta quando retomará a rotina de dietas e  treinos com a mesma dedicação ao se desafiar em outra montanha. Quer seguir evoluindo. É o que o faz sentir-se bem. É o que o faz sentir-se vivo. Começa a observar as pessoas que se dizem felizes. Presas a empregos que lhes desagradam, não se desafiam. Os anos passam e não evoluem. Não reconhece nelas o menor traço de vitalidade. Envelhecem precocemente. Estão cada vez mais sedentárias. Os músculos atrofiam, a coluna se curva, a vontade se dobra diante da menor contrariedade. Queixam-se de tudo e de todos. Ao final de cada mês, dão um suspiro antes de voltarem a se enterrar. Não vê felicidade nisso. Não é o que o satisfaz. Vitalidade é a sua fome. Se uma rotina norteada por atividades fisicas e intelectuais alimentam seu apetite pela vida, ele a seguirá até o fim de seus dias. Descobre naquele ano a receita para alcançar seus objetivos. Jamais a esquecerá. Emocionalmente e fisicamente mais forte, o resultado divulgado naquele final de tarde de dezembro não poderia ter sido outro...

3 comentários:

  1. Intrigante, instigante e incrivelmente sedutor esse trecho!

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  2. Legal!
    Cada um tem a sua estória diferente, mas essas de sucesso sempre tem os denominadores comuns! :)

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  3. Muito bom, cara! Confesso que é uma experiência interessante ter visualizado de fora esses momentos na minha infância, e agora, mais adulto entender o processo que você estava passando.
    Parabéns pelo esforço e determinação.

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